quarta-feira, 6 de maio de 2009

O DEVER E O DIREITO À MEMÓRIA

  1. O dever de memória e o direito à memória foi o espírito que animou o Simpósio Internacional sobre o Tarrafal reunido durante 4 dias no Tarrafal, com a presença de algumas dezenas de antigos presos políticos provenientes de 3 países, nomeadamente, Angola, Guiné-Bissau e Portugal, a que se juntaram os ex-presos políticos de Cabo Verde, o país anfitrião. Irmanados no mesmo desígnio, compareceram também vários outros convidados, com o objectivo de comemorar os 35 anos decorridos desde o encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal, um dos símbolos mais hediondos da ditadura fascista e colonialista de Salazar.

 

  1. No Campo de Concentração do Tarrafal estiveram encarcerados resistentes antifascistas de Portugal e combatentes das suas antigas Colónias Africanas. Alguns desses combatentes e resistentes esgotaram aí os seus dias, outros viram frustradas muitas das suas expectativas e ensombrados os seus sonhos. Mas, o Campo de Concentração do Tarrafal permitiu também que muitos de nós temperássemos ainda mais a nossa determinação, e pudéssemos compreender melhor a complexidade dos nossos processos de libertação.

 

  1. O Simpósio Internacional sobre o Tarrafal congregou várias gerações de ex-prisioneiros cabo-verdianos, guineenses, angolanos, e um português, Edmundo Pedro, hoje com 90 anos de idade. Pelo seu simbolismo, Edmundo Pedro merece sempre um especial destaque. Ele pertence ao núcleo dos que abriram o Campo, juntamente com o seu pai, Gabriel Pedro, no longínquo ano de 1936.

 

  1. Quando tomou a decisão de criar o Campo de Concentração do Tarrafal, Salazar não fazia questão de disfarçar a sua adesão aos princípios, aos valores e às práticas do fascismo e do nazismo, edificando, por exemplo, nas colónias, Campos de Concentração para encarcerar todos aqueles que se lhe opunham. Contudo, é bom que se diga, Hitler, o ideólogo do projecto nazista, foi ainda mais longe, ao criar Campos de Extermínio, tais como Auschwitz II, Treblinka, Majdanek, Belzec, etc.

 

  1. No Simpósio Internacional sobre o Tarrafal, ainda foi possível conviveram sobreviventes das cinco gerações de tarrafalistas, de diversas adesões políticas, actores plenos do processo de libertação nacional. O grupo que chegou em 1962, aquele que motivou o ataque às prisões de Luanda, em 1961, tem já poucos sobreviventes, muitos deles com enormes debilidades físicas, demasiado vergados pelos longos anos. Mas, foi bom vê-los, recordando o espírito da época, as suas epopeias, revivendo uma época que a história deve registar. João Fialho da Costa, João Lopes Teixeira, Nobre Dias, Manuel Lisboa Santos, Beto Van-Dúnem, também o eterno jovem Amadeu Amorim, pleno de saúde, prenhe de lembranças dos anos passados entre grades. Revivendo histórias de circunstância, esteve sempre presente o bom humor do “Mano Bi”, o Gabriel Leitão, de boa memória. Também o Luandino Vieira, com dezenas de anos em cima, mas tão lúcido e bem-humorado como o conheci no Tarrafal.

 

  1. Porém, a minha maior alegria foi termos conseguido incorporar na delegação homens quase tidos desaparecidos, como o Joel Pessoa, o Silva e Sousa, o Lote Sanguia, o Lote Sachiquenda, o Evaristo Miúdo, o Augusto Kiala Bengue, hoje renovados ao verem reconhecido o seu inestimável papel na nossa luta de libertação nacional.

 

  1. A nossa luta foi de muitos, não foi apenas de alguns. Foi essa a mensagem que procurei passar, quando me empenhei na localização de alguns velhos companheiros para também serem integrados na delegação angolana ao Simpósio. Deixá-los de fora, seria truncar a verdade histórica, seria trair a nossa memória colectiva. Por isso, lá estivemos, juntamente com o Vicente, o Jaime Cohen, o Alberto Neto, o Pacavira. Todos eles têm direito à memória. E nós temos o dever de os lembrar e, na sua pessoa, recordar outros companheiros que por lá passaram, como o Alcino, o Aldemiro, o Tito Armando, o Mendes de Carvalho, também o Jacinto, o Cardoso, o Liceu, o Nado, o Gilberto, o Velho Jonatão, o Juca Valentim, o Dava Benuá, o Paiva Domingos da Silva, o André Mateus Neto ou o Armindo Fortes.

 

  1. No Tarrafal estiveram homens de várias regiões geográficas do nosso país, de múltiplas confissões religiosas, até ateus. Todas as colorações epidérmicas participaram na nossa luta, assim como todos os grupos etários. Com o decorrer do tempo integraram o movimento de libertação nacional, funcionários públicos, alfaiates, enfermeiros, escritores, carpinteiros, estudantes. Foi notória, porém, a incorporação de indivíduos cada vez mais jovens, mostrando assim a vitalidade e a justeza da nossa causa.

 

  1. Passados tantos anos, foi com uma enorme ternura que os observei os meus companheiros desta digressão, alguns já com o andar trôpego. Lembrei-me sempre que foram homens valiosos que os colonialistas definiram como dos seus inimigos mais temidos. Foi reconfortante participar naquele Simpósio com antigos companheiros da minha idade, ainda sãos e lúcidos, alguns novamente engajados na luta pela transformação social nos nossos países, como o Pedro Martins, de Cabo Verde, ele que optou pela emigração, sem perder nunca o amor à sua pátria.

 

  1. O Simpósio sobre o Tarrafal permitiu também o convívio com resistentes portugueses, nossos indefectíveis aliados no passado. Vivemos, pois, um momento sublime, um momento de grande fraternidade.

 

  1.  No Tarrafal, representámos a vitória das nossas causas. Exprimimos por palavras, e também por actos, o nosso dever de memória. Reivindicámos o direito à memória. 

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