quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A PRISÃO DE IDELPHONSE NIZEYIMANA

1. A prisão no dia 5 de Outubro, no Uganda, de Idelphonse Nizeyimana, é uma boa notícia, sobretudo para mim que tive ocasião de ler, muito recentemente, o emocionante livro escrito pela ruandeza Immaculée Ilibagiza, no qual ela relata, ao pormenor, uma das dimensões mais chocantes do seu drama, do da sua família e também do seu povo, nos conhecidos fatídicos 100 dias do ano de 1994. Nessa altura, perpetrou-se no Ruanda, sem dúvidas, um dos maiores massacres dos tempos modernos.

2. A detenção de Idelphonse Nizeyimana assume justamente a importância que aqui atribuo, pois ele não foi um qualquer peão naquele macabro jogo de morte. Ex-capitão do Exército ruandez, ex-chefe dos serviços de inteligência, Idelphonse Nizeyimana foi tão-somente um dos mais conhecidos chefes operacionais das milícias extremistas hutus, os Interahamwe, responsáveis pela eliminação de cerca de 800 mil tutsis e hutus moderados.

3. Eu penso que todos quantos acompanharam, com algum cuidado, o genocídio que aconteceu no Ruanda, têm hoje uma ideia bem formada sobre o que se passou nos 100 dias que se seguiram à morte do presidente Juvenal Habyarimana. Contudo, se lerem – tal como eu li – o livro de Immaculée Ilibagiza, intitulado “Sobrevivi”, consolidarão a convicção de que, quer os autores directores, quer os mentores do massacre não são homens e mulheres civilizados – são puramente selvagens. Há que ter coragem de o dizer, mesmo que a expressão pareça exagerada. Eles portaram-se como os animais na selva, desventrando, degolando, fazendo pilhas de corpos sem vida, desrespeitando os mais elementares direitos humanos. E, como tal, merecem ser detidos, julgados, e responsabilizados pelos actos bárbaros que cometeram.

4. Em Abril de 1994, o avião em que viajava Juvenal Habyarimana, de regresso da Tanzânia, juntamente como o presidente do Burundi, foi abatido ainda no ar, quando pretendia aterrar no aeroporto de Kigali, a capital do Ruanda. O anúncio da sua morte escancarou, então, as portas do inferno… Caiu sobre os vales e as colinas do Ruanda um dos maiores castigos humanos que a história moderna regista. Aquilo não foi um confronto entre exércitos, nem mesmo uma luta entre homens civis mas munidos cada um de instrumentos de defesa, foi um acto de pura barbárie. No Ruanda aconteceu um morticínio motivado simplesmente por recalcamentos históricos e pelo ódio étnico. Por arrasto, os extremistas hutus eliminaram também os da sua etnia que não tinham relutância em conviver com a diferença.

5. Para entendermos melhor este acto de verdadeira loucura colectiva, ouçamos o modo como Immaculée Ilibagiza descreve a imagem física do seu país: “… um país minúsculo, engastado como uma jóia na África Central. É tão belo e deslumbrante que é impossível não ver a mão de Deus nas suas colinas suaves e exuberantes, montanhas envoltas em nevoeiro, vales verdejantes e lagos cristalinos. As brisas suaves que sopram pelas colinas e vagueiam por entre as florestas de pinheiros e cedros, são perfumadas com o doce aroma dos lírios e crisântemos. E o clima é tão agradável o ano inteiro que os colonizadores alemães que chegaram no final do século XIX a baptizaram com «terra da Primavera eterna»”.

6. Sigamos ainda o modo como ela resume a sua infância e a inocência que povoava o seu pequeno mundo: “As forças do mal que dariam à luz um holocausto que mergulhou o meu amado país num mar de sangue, estavam escondidas de mim quando eu era criança. Enquanto jovem, tudo o que conhecia do mundo era a maravilhosa paisagem que me rodeava, a bondade dos meus vizinhos e o profundo amor dos meus pais e irmãos. Na nossa casa, o racismo e o preconceito eram desconhecidos. Não tinha consciência de que as pessoas pertenciam a diferentes tribos ou raças, e nunca tinha sequer ouvido os termos tutsi e hutu até ter ido para a escola.” Tudo isso, depois, acabou.

7. Quando iniciou o massacre, Immaculée Ilibagiza teve que se refugiar na casa de um pastor hutu, amigo da família, que lhe deu guarida e a mais cinco mulheres de etnia tutsi. Ficaram escondidas numa minúscula casa de banho secreta, durante 90 dias. Eis também o relato dramático que ela faz, de quando a procuravam para a matar: “Havia muitas vozes, muitos assassinos. Conseguia visualizá-los na minha mente: os meus amigos e vizinhos – que sempre me tinham cumprimentado com amor e bondade – a moverem-se pela casa, com lanças e catanas e chamando pelo meu nome.”

8. No Ruanda, foi perpetrado um massacre selectivo pelas milícias Interahamwe de que Idelphonse Nizeyimana era chefe operacional. Esse grupo de extermínio nasceu de um movimento juvenil criado pelo partido do presidente Juvenal Habyarimana e que atraiu para a s suas fileiras milhares de jovens sem-abrigo. Espalharam-se rapidamente por todo o país, tornando-se numa milícia sectária, exclusivamente constituída por membros da etnia hutu. Evoluíram para verdadeiros bandos de rufias sem rei nem roque. Foram eles que executaram o projecto engendrado por Idelphonse Nizeyimana, Felicien Kabuga (ainda a monte), Bagosora, e outros.

9. Como foi possível gente vivendo num meio tão puro e tão belo praticar actos de tamanha barbárie, como os que Immaculée Ilibagiza viu e retrata no seu livro? É isto que me faz acreditar que, por vezes, o demónio pode estar escondido até mesmo por entre as flores mais belas e aromáticas de um jardim… Um desses demónios será, seguramente, Idelphonse Nizeyimana, um dos chefes operacionais do massacre que chocou o mundo e que desnudou ao pormenor os meandros da mente humana.

10. Afinal, quando o ódio se sobrepõe ao amor, quando a insanidade toma o espaço devido à racionalidade, quando os instintos mais primários se sobrepõem à reflexão, todos perdemos a inocência… E até mesmo as crianças deixam de o ser, tornando-se adultos, compulsivamente...

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