terça-feira, 24 de novembro de 2009

POSTAL DA COREIA DO SUL (III)

1. Cá estou eu, de novo, tal como prometi, enviando-vos o último “Postal da Coreia do Sul”. Com este “Postal”, quero, afinal, compreender melhor como foi possível, em tão pouco tempo, o “salto em frente” dado pela República da Coreia. Primeiro que tudo, devo dizer-vos que este país é pobre em matérias-primas, além de que é também demasiado montanhoso.

2. Teria apenas, pela frente, duas hipóteses: ou assentar o seu desenvolvimento na exploração de um qualquer factor natural que potenciasse, por exemplo, o turismo; ou, então, optar pela criação de tecnologia, de conhecimento, da indústria do saber fazer... É aqui, pois, que reside o mérito. Os coreanos seguiram um caminho idêntico ao do Japão, ainda a 2ª economia do mundo, esse vasto arquipélago constituído por uma multidão de ilhas, muitas delas desabitadas.

3. Viajei para a cidade imperial de Gyeongju, utilizando o “TGV” local – o TGV é a sigla usada para designar “O Comboio de Alta Velocidade” e que vem do francês “ Le Train à Grande Vitesse”. Aqui chamam-lhe “KTX”, com origem na designação “Korea Train Express”. Tal como o seu equivalente europeu, este comboio chega a ultrapassar a velocidade de 300 km/hora. Na sua construção, contou com a colaboração inicial de empresas francesas, como, por exemplo, a Alstom.

4. Entrei, pois, no “TGV” coreano em Seul, e saí na cidade de Daegu. Este meio de transporte, rápido, seguro e muito cómodo ainda não chegou à cidade de Gyeongju, que era, afinal, o meu destino. Ele só atingirá Gyeongju no ano de 2010, quando estiver terminado o seu segundo troço. O “TGV” é um “luxo” que já existe na Coreia há cerca de 5 anos. Ele permite reduzir para metade o tempo do percurso entre Seul e Daegu. Reparem que a variável tempo é fundamental na equação do desenvolvimento. Daí que se diga, justamente: “Tempo é dinheiro”. Para os ingleses: “Time is money”.

5. A questão da construção, ou não, do “TGV” é matéria do debate político português... E esses políticos perdem demasiado tempo a discutir uma matéria que nem deveria ser objecto de discussão... Na pior da hipóteses, seria admissível apenas questionar sobre os “timings”, nunca sobre a sua utilidade... É evidente que se os portugueses não construírem o seu “TGV”, a fronteira económica e social ocidental da Europa colocar-se-á no ponto em que Portugal roça a Espanha…Como toda a Europa praticamente já aderiu ao “TGV”, eu penso, pois, que os portugueses ainda discutem o sexo dos anjos… Mas, vamos prosseguir.

6. No percurso para Daegu, a minha cicerone e intérprete mostrou-me a cidade onde vive a sua mãe. A cidade chama-se Daejeon, e intérprete disse-me: “A cidade tem como actividade principal a investigação de alta tecnologia. É uma espécie de NASA”. Vou ajudar-vos a entender a mensagem: A NASA é a Agência Espacial Norte-Americana, aquela que lança os satélites para o espaço.

7. Cheguei, então, a Daegu. Trata-se de uma cidade metropolitana com uma grande concentração académica. É a capital da província de Gyeongsang Norte - apesar de não fazer parte dessa província. Esse é um dado original: a capital da província não faz parte da província. Quarta maior cidade do país, possui à volta de 2,5 milhões de habitantes. Albergou parte dos jogos da Copa do Mundo de 2002.

8. Daegu possui uma das universidades públicas mais importantes do país, com cerca de 32.000 estudantes, dos quais 1.267 são estrangeiros. São estudantes vindos de muitas partes da Ásia, mas, em especial, da China e do Japão. Ela acolhe também estudantes provenientes da Europa e de outras paragens.

9. A cidade de Daegu orgulha-se de ter uma das escolas tecnológicas mais avançadas do país e do mundo e um campus universitário que se confunde com uma cidade. No conjunto dos 4 campus dessa universidade, espalhados por outros locais, existem 180 edifícios, muitos deles de enormes dimensões – em Luanda, seriam, por exemplo, considerados torres... Os edifícios estão profusamente cercados por muito verde, por jardins, relva, quadras de jogos, etc. É uma cidade dentro da grande cidade.

10. Afinal, foi a educação que criou as condições para o desenvolvimento da Coreia. Foi também a razão de ser da minha visita a este país moderno, mas velho com mais de 5.000 anos de história. Ele reconstruiu-se em pouco mais de 30 anos. Por isso, é justamente considerado como um dos “Tigres Asiáticos”. Digo-vos: os coreanos apostaram na educação, mantendo a cortesia – e, de modo algum, se consideram especiais… É bom que saibamos isso!

11. A Coreia do Sul é hoje o país com o melhor ensino de base do mundo. Os investimentos que fez na educação são o principal responsável pelo seu crescimento económico.

12. A chamada “Guerra da Coreia” havia deixado atrás de si um milhão de mortos e uma miséria generalizada. 1 em cada 3 sul-coreanos era analfabeto. Hoje, algumas décadas depois, 8 em cada 10 sul-coreanos chegam à Universidade. De tal modo que as Secretárias têm que possuir uma Licenciatura em Secretariado, e aos Professores Primários exige-se um Mestrado em Pedagogia.

13. A Coreia do Sul possui cerca de 4 milhões de estudantes a frequentar o ensino superior, e perto de 200 mil a realizar Mestrados e Doutoramentos. Muitos desses Mestrandos e Doutorandos estão em Universidades americanas, britânicas e japonesas.

14. A opção pela educação é clara e inequívoca. O ensino de base é todo gratuito. O ensino superior não é - mas o Estado subsidia os melhores estudantes, dá bolsas a quem tem bom aproveitamento. Premeia-se o mérito – não se põe todos em pé de igualdade. A lógica sul-coreana foi: universalizar o ensino, permitir a igualdade de oportunidades, apostar na qualidade.

15. As autoridades acham que a melhor forma de participar na globalização é promover uma educação de qualidade, para tornar os seus cidadãos competitivos à nível mundial. Para isso, decidiram introduzir o ensino do inglês desde o nível primário. Assim, o inglês transformar-se-á também uma língua nacional e os coreanos poderão facilmente ingressar em qualquer das melhores escolas do mundo.

16. Pensemos seriamente nisso. Não tenhamos receio de colocar esta questão em discussão. Senão, o nosso lugar no ranking mundial será o pelotão retardatário, ou mesmo a cauda. E o desenvolvimento passará por nós de risco ao lado..., assobiando para o ar...

17. Para além das imensas e enormes torres, Seul possui muitos museus temáticos e palácios para visitar. Aqui, respira-se história e cultura. É uma pena já vos ter cansado com três “Postais”, senão, um dia destes ainda falaríamos da história e da cultura. Sobretudo, da cultura que é um factor de desenvolvimento.

18. Eles possuem uma multidão de cientistas, na sua maioria ligados às áreas tecnológicas, que vão desde a computação à genética. A Matemática é a base do desenvolvimento tecnológico. Nós, em Angola, temos que criar a cultura da Matemática. É isso que tornou a Coreia ou o Japão players de alta competitividade mundial. Boa educação, muitos recursos investidos na investigação, quer na investigação pura, quer na aplicada. Resultado: Hoje, a Coreia possui cerca de 3 mil produtos patenteados mundialmente. É um agente da globalização e não uma “vítima” da globalização... Não se queixa, orgulha-se.

19. Não é possível entrar no mundo desenvolvido sem ter tecnologia própria. Inicialmente, o país pode começar por comprar tecnologia, mas, depois, ele tem de passar à fase da elaboração de tecnologia própria. Não fazer isso, é laborar num tremendo erro. É criar múltiplos equívocos.

20. A reforma na educação, permitiu que, durante os últimos 30 anos, a economia do país tivesse crescido a uma média de 9% ao ano. Há 30 anos atrás, o PIB per capita da Coreia do Sul era de 80 usd; hoje está nos 20.000 usd. Não é petróleo, nem qualquer outro recurso natural, é labor, é trabalho, dentro de uma estratégia correcta.

21. Há mesmo quem tenha feito a seguinte comparação interessante: Há 40 anos atrás, a Coreia do tinha o mesmo PIB per capita que o Brasil. Hoje, o seu PIB per capita é o dobro do Brasil. Com apenas 40 milhões de habitantes, a Coreia do Sul exporta o dobro das exportações do Brasil, e exporta, sobretudo, produtos de alta densidade tecnológica.

22. Vale a pena estudar este país, analisar o seu processo de desenvolvimento. Vale a pena tê-lo como referência. Ele é hoje uma montra do mundo.

23. Tenho razão quando, por vezes, digo que o século XXI será asiático, pelo menos no que diz respeito à Ásia do Nordeste. Se quisermos que, pelo menos uma parte deste século XXI também seja africano, há que lançar desde já as sementes. As sementes são os homens, são os jovens, é a qualidade da educação. Esse é, sim, um investimento virtuoso!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

POSTAL DA COREIA DO SUL (II)

1. Aqui está o meu segundo “Postal da Coreia do Sul”. Poderá ser o último, pois já estou quase de volta. No regresso, decidirei, então, se ainda vale a pena continuar a enviar-vos “Postais da Coreia”, ou se é melhor tratar de um outro tema, talvez mais interessante, quiçá mais atractivo. A decisão final competirá a vocês que me ouvem (e lêem) com bastante indulgência. Prometo-vos que saberei interpretar a vossa vontade.

2. Na realidade – e para ser sincero – esta curta estadia na Coreia do Sul foi tão rica que até me passou pela cabeça voltar a Seul, para continuar a perceber como foi possível, em tão pouco tempo, terem reconstruído um país de mais 40 milhões de habitantes, um país que sofrera uma guerra destruidora. Como sabem, a chamada Guerra da Coreia, que inspirou livros e filmes da minha juventude, provocou a separação da Península da Coreia em duas partes: a Coreia do Sul, democrática, de economia de mercado e liberal; a Coreia do Norte, de regime totalitário de cariz comunista, economia planificada e dirigida centralmente. Uma é uma democracia que funciona; a outra, é uma ditadura feita república monárquica, onde os filhos substituem os pais, apenas porque são filhos desses pais…

3. Olhando para o passado, dou razão a quem me disse, ainda há dias, o seguinte: “A Inglaterra iniciou a sua Revolução Industrial há 200 anos. Hoje é um país desenvolvido, como todos sabemos e reconhecemos. A Coreia do Sul precisou apenas de 3 décadas para se reconstruir e, sobretudo, para vencer um secular subdesenvolvimento”. É, realmente, um feito espectacular, tendo como referencial os maus momentos por que também passou, até consolidar a sua democracia.

4. Visito, pois, a 12ª economia do mundo. É isso mesmo o que eu disse: Num mundo com cerca de 200 países, a Coreia do Sul tem a 12ª economia mais forte, em termos globais, além de possuir um dos PIBs per capita mais robustos das chamadas economias emergentes – uns invejáveis 20.000 dólares norte-americanos. Quer dizer que, se houvesse um G20 –instituído apenas com base no PIB Global (e mesmo até que o fosse com base no PIB per capita) – a Coreia do Sul seria, seguramente, hoje, seu membro de pleno direito. De modo algum seria um convidado de circunstância…

5. Como é meu hábito, não me fiquei pela observação de jardins, palácios, torres, rios e avenidas. Tive também a possibilidade de conversar, de questionar, de dar opinião, socorrendo-me do conhecimento que tenho sobre a história e sobre o momento presente desta parte do mundo, dos países do nordeste da Ásia.

6. O mal de muitos de nós é não darmos atenção à história dos outros povos, nem cuidarmos de acompanhar com a devida atenção o seu desenvolvimento. É isso que, por vezes, dificulta o diálogo e nos impede de entender as transformações que vão acontecendo, e cada vez mais de um modo acelerado. Outro dos nossos males é ficarmo-nos por um conhecimento muito superficial das suas culturas, estreitando o nosso saber ao que se passa nos países ocidentais. Isso coarcta-nos a possibilidade de fazermos uma leitura global e transversal, estreita os nossos horizontes. Um terceiro mal, é vermos os outros países como se fossem apenas um “centro comercial”, um grande “bazar”, um local para fazer compras.

7. Seul é uma cidade impressionante: limpa, moderna, que soube preservar os traços marcantes da sua história. De algum modo, Seul cuida da sua identidade – apesar dos seus 11 milhões de habitantes. Esta Seul moderna, a Seul dos nossos dias, está hoje a ser construída na vertical, não por um mero capricho, ou por um modismo efémero, mas porque tem pouco espaço para se expandir. Foi a própria natureza que lhe traçou os limites.

8. Seul está cercada por montanhas e é rasgada por um largo rio alimentado por pequenos riachos, como a rede de veios que alimenta uma folha larga. Dentro de Seul há numerosos e longos túneis, mas também inúmeras pontes, ligando as margens e facilitando a fluição automóvel. Tem um sistema de Metro muito moderno, competente, extenso e articulado, o que facilita, e de que maneira, o trânsito dos que moram longe dos seus locais de estudo ou de trabalho. É, sim, uma grande metrópole em qualquer parte do mundo, seja no continente europeu, seja no continente americano, seja nas restantes cidades asiáticas modernas e avançadas.

9. Seul é um gigante dinâmico e cheio de vitalidade, com os pés bem assentes na terra. Seul não dá a sensação de se estar a navegar num iate de luxo, deslizando sobre um curso de água caótico e poluído, como sucede nas grandes metrópoles dos países do Terceiro Mundo.

10. Por norma, as grandes cidades do Terceiro Mundo são extensas e asfixiantes. São contraditórias. Nelas, lado a lado, coexiste a miséria mais humilhante e degradante, com a riqueza agressiva, provocante e arrogante. São desordenadas, porque são o fruto de uma qualquer e fortuita circunstância: ou porque o país (através das suas elites) beneficiou, num determinado período, de um rendimento extraordinário; ou porque as burguesias estrangeiras, e fruto dessa circunstância, decidiram transportar para tais cidades pedaços seleccionados dos seus modos de vida. Tomam, então, a forma curiosa de ilhas de modernidade cercadas por grande miséria geral.

11. Isso não é desenvolvimento. Isso é, apenas, uma ficção, uma ilusão de desenvolvimento. Esse é um crescimento ocasional, sem sustentabilidade, porque não está assente num enriquecimento duradouro. De repente, tudo pode ruir – caso as circunstâncias que lhe deram origem se alterem bruscamente… Aconselho a que não tenhamos essas sociedades como as nossas referências. O desenvolvimento pressupõe crescimento, mas um crescimento em todas as dimensões, um crescimento que também incorpore o homem nas suas variáveis.

12. É evidente que um país com generosos recursos naturais poderá ter mais facilidades para se desenvolver. Mas tem também de saber elaborar estratégias políticas coerentes e consistentes. O desenvolvimento não se consegue aos solavancos, com inspirações momentâneas. Temos, por isso, que abrir um profundo debate sobre o que queremos para o futuro e como devemos aplicar os resultados dos recursos que a natureza nos ofereceu. Esse não pode ser o privilégio de alguns que se julgam com mandato indeterminado para decidirem sobre o futuro de todos, do país.

13. Olhando de novo para Seul. Vemo-la cercada por inúmeras montanhas, montanhas que lhe emprestam beleza natural e a sensação de equilíbrio e da natureza estar sempre presente. Se os coreanos tivessem arrasado as montanhas para ampliar o raio da cidade, teriam, seguramente, provocado uma subida da temperatura, com as consequências que se adivinham.

14. O homem moderno coreano soube criar edificações para seu uso, mas sem agredir a natureza. Percorrendo as suas múltiplas auto-estradas, vemos como se pode fazer um bom aproveitamento dos vales para a produção agrícola. Estão lá as montanhas, imponentes, florestadas, produzindo oxigénio que insufla vida.

15. Agora é o Outono, e o Outono é lindo: a folhagem está a mudar de cor, as folhas estão a cair. As árvores ainda exibem múltiplas tonalidades. Depois, virá o Inverso, rigoroso, com o seu manto branco. Por definição, todas as estações do ano têm a sua originalidade e a sua beleza. Compete ao homem saber retirar o devido proveito de todas elas. Geralmente, a natureza é boa – nós é que a agredimos, e depois sofremos as consequências dessa agressão.

16. Esta é uma sociedade altamente tecnológica. Possui, inclusive, cidades de uma fortíssima densidade tecnológica, onde se concentram os principais cérebros do país nos laboratórios de investigação do mais elevado nível. São estes homens e mulheres que criam novos produtos e novos processos. São eles que transformam o presente e moldam o futuro. São os verdadeiros responsáveis pelo salto para o futuro que foi dado em tão pouco tempo. Isso deveu-se à educação, assunto de que vos falarei no próximo “Postal de Coreia do Sul”. Está percebido e está decidido. Bye, Bye!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

POSTAL DA COREIA DO SUL (I)

1. Estou na Coreia do Sul e escrevo-vos a crónica desta semana sob a forma de um Postal de Viagem. É um pouco original, mas conto com a voz do Manuel Vieira para a fazer chegar até vós, na devida forma. Achei esta a via mais adequada para prosseguirmos o nosso diálogo semanal, um diálogo que já dura 10 anos e que muito prezo. Pelas vossas manifestações de carinho, sei que vos agrada este contacto, esta interacção permanente. No meu regresso, terão de novo a minha voz, esta voz a que já se habituaram e que vos é fiel às Segundas e Terças-Feiras.

2. Sei desde muito pequeno que a Península Coreana foi historicamente um alvo privilegiado da cobiça estrangeira, ou por parte da China, ou por parte do Japão. Se o Japão dominasse a Coreia, mais facilmente chegaria à China, afinal, a sua grande ambição. Se a China a subjugasse, ficaria com o Japão de frente, à sua mão de semear, como dizia repetidamente a minha mãe. A Península Coreana chegou a ser anexada pelo Japão, no ano de 1910, numa altura em que, fruto do processo de industrialização e desenvolvimento capitalista, aquele país pretendeu transformar-se na principal potência oriental. A Península Coreana pagou, assim, o tributo devido à sua localização entre as duas potências asiáticas com vocação mais hegemónica.

3. Para além das destruições e mortes causadas pela invasão japonesa, os coreanos lamentam ainda hoje as suas diversas tentativas de assimilação. Para além do esforço de integração da economia coreana na japonesa, os japoneses tentaram ainda impor-lhes a sua língua, também os seus hábitos e costumes, inclusive, os seus nomes. Eu penso que a posterior influência cultural e económica norte-americana, terá ajudado, por exemplo, a Coreia do Sul a transformar-se naquilo que é hoje: uma economia moderna dando corpo a um país de progresso.

4. Quando cheguei, no dia 5, ao aeroporto de Incheon, situado a uma razoável distância de Seul, a capital da Coreia do Sul, foi fácil entender como um acontecimento desportivo da dimensão do Campeonato de Mundo de Futebol de 2002, realizado conjuntamente pela Coreia e o Japão, pôde estimular a modernização de uma região do país outrora retardada. O novo aeroporto internacional de Incheon e a auto-estrada que lhe dá acesso criaram as condições para urbanizações modernas, valorizando assim largas superfícies de terra. É aquilo que podemos chamar de investimento virtuoso, gerador de sinergias.

5. Porém, pelo menos até agora, e no ponto em que me encontro desta primeira visita à Coreia do Sul, o que mais me impressionou foi ver o esforço que as autoridades locais realizaram para despoluir e reaproveitar o velho e antes muito poluído rio Cheong Gye Cheon, que corta praticamente ao meio a cidade de Seul. Assim, reurbanizaram uma boa parte da cidade, num esforço tão simbólico e gigantesco, que o governo da cidade mandou edificar um museu, apenas com o objectivo de preservar a história desse grandioso projecto.

6. Até ao ano de 2005, o rio Cheong Gye Cheon era extremamente poluído, por causa da falta de saneamento numa parte da cidade. Em 2 anos e 3 meses, com início em 2003, procedeu-se à sua transformação radical. Começou por se retirar um viaduto construído sobre o rio em 1958. Reabilitou-se o canal, melhorou-se a qualidade da água, reintegrou-se no ecossistema espécies animais e vegetais outrora desaparecidas. Hoje, onde antes havia degradação e caos, há um lindo espaço de recreação e turismo, com o comércio ordenado. A reabilitação do rio Cheong Gye Cheon produziu, igualmente, efeitos sobre a temperatura ambiente. A temperatura média diminuiu alguns graus centígrados. O clima ficou mais ameno. É acção positiva do homem sobre o meio em que se insere, pondo-o ao seu serviço, no seu interesse e das futuras gerações.

7. Este primeiro contacto com Seul colocou-me de frente com a triste realidade da nossa Luanda. Em Luanda, insistimos em destruir o nosso património histórico e cultural, e faz-se um esforço notável para a desarborizar a cidade – uma cidade que já está praticamente careca... A perceptível que a nossa cidade está cada vez mais quente, e mesmo assim, os sucessivos governadores mostram-se insensíveis e incapazes de compreender os impactos ambientais resultantes da destruição das árvores e da eliminação de poucos espaços de recreação que restaram do período colonial.

8. Quando hoje percorria as estradas que ladeiam o rio Cheong Gye Cheon, deu-me para perguntar a quem me acompanhava sobre o que seria feito das casas antigas que ainda já se vêem. Responderam-me que algumas delas seriam preservadas, permanecendo como um testemunho para a posteridade. A municipalidade manterá o conceito da Cidade Velha, como sucede em qualquer grande cidade que tenha história e que a preze.

9. Infelizmente, em Luanda, estamos a matar a nossa Cidade Velha, estamos deliberadamente a sepultar a sua história. As antigas edificações que testemunhavam a história da nossa cidade, da nossa economia e da nossa sociedade tornaram-se o alvo preferencial do camartelo demolidor e da especulação imobiliária. Nos espaços assim criados, edificam-se agora instalações sem qualquer originalidade, visíveis em qualquer parte do mundo.

10. À medida que em Luanda se derrubam as nossas casas centenárias, perco a possibilidade de revisitar a história que aprendi nos livros, bem como aquela que entendi nos ensinamentos dos mais-velhos.

11. Ver o rio Cheong Gye Cheon, de Seul, reabilitado, purificado e ordenado, ele que era caótico e poluído, hoje purificado e ordenado, dá-me a sensação da utilidade desta visita à Coreia do Sul. Resta-me, porém, ainda, a esperança de ver alguém fazer qualquer coisa para salvar a nossa Luanda, modernizando-a, sim, mas preservando os vestígios da sua história, ela que se orgulhava de ser a cidade mais antiga da costa ocidental de África. Hoje, Luanda está demasiado exposta à sanha destruidora dos que só sonham com betão e com espelhos de várias cores. Luanda está feita uma cidade extremamente quente e sem história.

12. Mais uma coisa: acabo de visitar o Palácio Chang Deok Gung, o antigo palácio dos Reis da Coreia. Está preservado e aberto ao turismo. Aqui ninguém o transformou num local de farras, ou em espaço para se festejarem os casamentos da nomencklatura.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

MIGUEL ÂNGELO, MEU SOBRINHO

1. Os anos da guerra foram dramáticos: quer de um lado, quer do outro, morreram inúmeros angolanos; famílias inteiras desapareceram, sobretudo nas áreas rurais, onde a ferocidade foi maior; compatriotas nossos ficaram isolados em zonas remotas, sem contacto, ou com medo de se exporem e serem, então, tidos por perigosos ou inimigos.

2. Um dos maiores dramas humanos que a guerra produziu foi o afastamento de pais e filhos, idos para as frentes de combate, ou então, saídos para o exterior. Uns partiram para estudar, outros para trabalhar. Não poucos retornaram esporadicamente ao país, para assistirem, por exemplo, a funerais, ou então, nas épocas festivas – geralmente, pelo Natal. Houve quem nunca mais voltou a pisar solo angolano. Esses, no mínimo, perderam as ténues raízes que os ligavam à terra. Foi o caso do Miguel Ângelo, meu sobrinho, filho da minha irmã Antónia Pinto de Andrade e do Joaquim Gouveia. O Miguel Ângelo ficou lá fora, para sempre… Nunca mais retornará à nossa terra. O meu sobrinho, Miguel Ângelo, foi de vez… Ele que tinha ido apenas para estudar. Peço que partilhem comigo esta pequena parcela da minha intimidade.

3. A minha irmã Antónia foi de um grande simbolismo para a nossa família. Ela foi sempre referencial. Na nossa família, não nos habituámos a distinguir entre filhos de pai e mãe, ou filhos apenas de uma das partes. Fomos sempre muito unidos. Desconhecemos a figura do meio-irmão.

4. Causa-me algum incómodo, quando ouço, por exemplo, alguém dizer que fulano é meio-irmão de sicrano. Não foi essa a linguagem que aprendi no seio familiar. Fomos todos irmãos, sem restrições ou partilhas reduzidas. A minha irmã Antónia, que não era filha da minha mãe, tratava a minha mãe por mãe, com o mesmo carinho que nós, seus filhos de sangue. A minha mãe sempre dedicou um extremo carinho à minha irmã Antónia, sua enteada. Entre nós, estabeleceu-se uma afectividade pura. De algum modo, isso ajuda a explicar a sensibilidade e também o espírito solidário que cultivámos como um valor inquebrantável.

5. Depois de fazer o Liceu, no Liceu Salvador Correia, a minha irmã Antónia tirou o Curso Geral de Enfermagem. Foi sucessivamente transferida de uma Província para outra Província, até que conheceu Angola de lés-a-lés.

6. Já a trabalhar, a minha irmã Antónia regressava a Luanda por curtos períodos de tempo – um regresso que nos enchia de alegria, mas, também, de ansiedade. Para além do carinho, ela fazia-se acompanhar de prendas. Éramos órfãos de pai – o nosso pai comum morrera cedo. A Mana Antónia oferecia-nos calções novos, camisas, camisolas, sandálias, bikinis, sapatos. Fazia questão de nos levar ao restaurante, para quebrarmos um pouco aquela monotonia de órfãos com poucos recursos. A Antónia queria ocupar o espaço do pai que havia morrido…

7. A Antónia era carinhosa, muito meiga e atenciosa. Recebíamo-la sempre com entusiasmo. Preocupava-se connosco, com os nossos estudos, com a nossa educação, com o nosso futuro. O apoio da Mana Antónia completava o esforço e a dedicação da nossa mãe.

8. Depois, casou com o Joaquim Gouveia, que foi para nós, igualmente, como um irmão mais velho. Bom e extremamente educado, de boas maneiras. O casal tinha um padrão de vida razoável para a época, inclusive, já tinham casa e carro próprios. O Mano Gouveia vestia bem, gostava de fatos elegantes. Foi dele o primeiro fato que eu vesti – para ir a um funeral. Não me senti bem dentro do fato: o Gouveia era alto; eu, não.

9. O Mano Gouveia e a Mana Antónia tornaram-se a imagem do casal exemplar, do casal de respeito. Eram motivo da nossa admiração. Nunca lhes ouvi, por um momento que fosse, a voz alterada. Tenho sempre saudades da minha irmã Antónia e do meu cunhado Gouveia! …

10. Chegados de Cabo Verde, eu e o Vicente partimos para o Congo, passando por Cabinda. A Antónia e o Gouveia estavam em Cabinda – ela, enfermeira; ele, funcionário de Fazenda. Os anos que estivemos na cadeia deixaram nesses nossos irmãos uma enorme saudade. Revimo-nos brevemente. Tínhamos que partir, novamente, para iniciar uma nova aventura – eu e o Vicente.

11. O Gouveia apoiou-nos. Arranjou o estafeta que nos fez atravessar a fronteira de Massabi, com o Congo Brazzaville. Também se chamava Vicente. A minha irmã e o meu cunhado foram muito solidários connosco: entendiam a nossa inquietude e a nossa forma de estar na vida, compreendiam também o nosso modo de estar na política. Nós fomos sempre inquietos e inconformistas.

12. Em Cabinda, estavam também os seus dois únicos filhos, ainda pequenos, o Tó Quim e o Miguel Ângelo. O Tó Quim e o Miguel Ângelo eram sobrinhos exemplares: educados, de boas maneiras, bons filhos, bons sobrinhos. O meu cunhado Gouveia e a minha irmã Antónia adoravam os seus dois filhos. Os meus sobrinhos eram distintos: o Tó Quim sempre muito chegado ao pai, um pai que o cumulava de mimos e presentes; o Miguel Ângelo era um pouco mais expansivo – era muito próximo da mãe.

13. Retornando a Luanda, viveram no Bairro Alvalade. Até que a guerra fez com que tomassem a decisão de enviar os dois únicos filhos para Portugal, para estudar. Privaram-se da sua presença, para garantir o seu futuro, sem muitos sobressaltos. A minha irmã e o meu cunhado fizeram tudo para que nada faltasse aos seus filhos. Vi muitas vezes a melancolia escondida dentro dos seus olhos. Estavam a envelhecer com os filhos distantes. Primeiro, Lisboa; depois, partiram para Londres. Passados anos, os meus sobrinhos regressaram a Portugal, optando, então, por se fixarem no Algarve, em Portimão.

14. A minha irmã Antónia morreu de ataque cardíaco – seguramente sofrendo pela ausência dos filhos. O meu cunhado Gouveia morreu pouco depois. Não era possível continuar a viver sem a Antónia e sem os filhos. O Gouveia não resistiu a tanta saudade… Os meus sobrinhos viram-se, assim, bruscamente, sozinhos no mundo, e afastados do núcleo central da família.

15. Quando o Miguel Ângelo era pequeno, eu dizia, frequentemente: gostava que fosses pintor ou escultor, um artista como o Miguel Ângelo, o famoso italiano da época renascentista, o autor da Pietá e de David, o autor do Génesis e do Juízo Final, pintados na Capela Sistina. É que a minha irmã e o meu cunhado guardaram zelosamente consigo os desenhos que os meus sobrinhos fizeram na infância. Guardaram também os seus brinquedos.

16. O meu sobrinho Miguel ouvia-me e ria-se. Ele dizia que a única coincidência que havia entre si e o Miguel Ângelo, o italiano, era apenas no nome – nunca nos destinos da vida. Propus-lhe um outro percurso, o de Michelangelo Antonioni, o cineasta italiano, autor de L’Eclisse e de Il Deserto Rosso. O meu sobrinho Miguel Ângelo recusou o caminho do Michelangelo Antonioni. O intelectual é o Tó Quim, que começou por estudar Direito em Lisboa e foi para Londres para estudar História da Arte.

17. Que eu saiba, o meu sobrinho Miguel Ângelo foi, até hoje, o único Miguel Ângelo na estirpe dos Pinto de Andrade – A nossa estirpe tem séculos e vários caminhos percorridos. O Miguel morreu no Domingo, dia 25, em Portimão, abruptamente, fulminado por um ataque cardíaco – afinal, como morreu a sua mãe e alguns dos outros meus irmãos. O Miguel Ângelo morreu como, geralmente, morrem os Pinto de Andrade. Ele foi o único Miguel Ângelo da nossa linhagem, mas morreu como morrem muitos dos Pinto de Andrade: de ataque cardíaco. Afinal, essa é a nossa estranha forma de morrer...