terça-feira, 29 de dezembro de 2009

PAUL SAMUELSON

1. Volta e meia, um amigo meu que não é economista coloca-me questões interessantes sobre economia. Há dias, por exemplo, ele desafiou-me a escrever um texto de homenagem ao Professor Paul Samuelson, recentemente falecido, aos 94 anos de idade. Para quem não sabe, o Professor Paul Samuelson foi dos mais brilhantes economistas do século XX. Foi, também, o primeiro norte-americano a ganhar o Prémio Nobel da Economia, em 1970, cuja verdadeira denominação é “Prémio de Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel”.

2. O meu amigo é médico mas, num dos seus devaneios e curiosidades científicas, fez uma curta incursão pelo estudo da economia, já lá vão, seguramente, umas boas dezenas de anos. Nesta vertente, ele é um pouco o espelho da minha geração.

3. Muitos dos meus contemporâneos primaram pelo engajamento social e político, mas outros manifestaram sempre um elevado apego ao conhecimento científico. Houve, também, quem tivesse conseguido associar todas essas vocações. Indiferentes, conheci poucos.

4. O meu amigo Gigi Mendonça, o tal médico de que vos falei, sempre me disse que não se importava nada de ser economista, talvez sociólogo, até mesmo advogado. Inteligência e capacidade de trabalho nunca lhe faltaram. Outro amigo meu, o Manuel Jorge – que é advogado – na nossa juventude, foi de tal modo metediço que até estudava os mesmos livros que nós. Nós que éramos da área das Ciências Exactas. Havia ainda o Vicente, o meu irmão, que trocava voluntariamente o estudo das suas matérias curriculares pela leitura de outros livros, livros de todo o tipo, literatura diversa. Na realidade, éramos todos mais ou menos assim: curiosos e inquietos.

5. De forma alguma eu podia desconsiderar o pedido do meu amigo Gigi Mendonça, já porque ele sempre me disse que tinha dadosos seus passos iniciais no estudo da economia socorrendo-se do mais famoso livro de Paul Samuelson: “Economia: Uma Análise Introdutória”.

6. Há que fazer justiça: Paul Samuelson foi um pouco o Professor de todos nós – nós que estudámos pelos seus livros. Os livros de Paul Samuelson foram sucessivamente actualizados, fazendo parte das nossas bibliotecas. De um modo sistemático e organizado, Samuelson contribuiu para que entendêssemos melhor os meandros da ciência económica.

7. Eu digo sempre aos meus alunos que, sem o contributo da matemática, a Economia não passaria de um discurso teórico, e ficaria ainda ao nível da Economia Política. Ou então, manter-se-ia (já o fora no passado) como um ramo auxiliar do Direito. Foi a matemática que deu, pois, estrutura, consistência e autonomia à ciência económica.

8. Paul Samuelson foi dos que mais contribuiu para essa estruturação, consistência e independência. A ele se devem trabalhos de aplicação rigorosa da análise matemática ao equilíbrio entre preços, oferta e procura. Com ele, e graças à matemática, foi possível a elaboração dos modelos económicos, de que hoje nos socorremos para estudar os fenómenos, e depois fazer previsões.

9. Paul Samuelson foi consequente até ao final dos seus dias, mantendo-se fiel ao pensamento keynesiano. Para si, por exemplo, a saída da recente crise económica passava pelo aumento da despesa do Estado, pelo corte nos impostos e pela manutenção de taxas de juro bastante reduzidas, muito próximas de zero. Paul Samuelson nunca acreditou na infalibilidade dos mercados, ou na sua capacidade ilimitada de gerar empregos. Achou que, sobretudo em momentos de crise, o papel do Estado era fundamental.

10. Paul Samuelson licenciou-se na Universidade de Chicago, onde conheceu o também famoso economista Milton Friedman. Mas não se deixou seduzir pelas ideias de Milton Friedman. Figuram nos anais da história as discussões intelectuais entre estes dois economistas, que se tornaram uma das marcas do século XX. Ele seguiu, sim, os ensinamentos de um outro economista, Alvin Hansen, este também um distinto keynesiano. Depois, partiu para Harvard, fixando-se, porém, definitivamente, no MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts).

11. A sua tese de doutoramento, publicada em livro com o título “Fundamentos da Análise Económica”, datada de 1947, revolucionou o pensamento económico e foi considerada a melhor tese de Doutoramento da Universidade de Harvard sobre economia. O livro mais lido de Paul Samuelson, “Economia: Uma Análise Introdutória” foi editado 19 vezes, em 40 línguas. Actualizou-as sempre, inserindo novas questões e exemplos mais recentes. Publicaram-se 4 milhões de exemplares. Durante vários anos, fiz questão de adquirir as sucessivas edições desse livro. Nos últimos 4 ou cinco anos, perdi-lhe o rasto.

12. Paul Samuelson foi Professor de muitos laureados com o Prémio Nobel de Economia, como, por exemplo, Paul Krugman. Foi também Professor do actual líder da Reserva Federal norte-americana, Ben Bernanke que, ao tomar conhecimento da sua morte, declarou: “Paul Samuelson foi tanto um pioneiro quanto um teórico económico prolífico, e um dos maiores professores que a economia já conheceu”. E acrescentou: “Ele é um titã da economia”.

NÃO SOMOS NADA ESPECIAIS

1. Decorreu mais um ano do calendário, e este é o período dos balanços. Far-se-ão balanços para todos os gostos, e a todos os níveis. É o típico remexer no fundo do baú – um exercício que não é nada fácil, e que vem muitas vezes carregado de algum subjectivismo.

2. Para início de conversa, é preciso dizer que, em 2008, o nosso país era já a 7ª economia africana, a 2ª da SADC (Comunidade dos Países da África Austral), a 1ª da CEEAC (Comunidade Económica dos Estados da África Central). Em termos africanos, somos, pois, já um país a ter em conta. Tomando como referência apenas a nossa inserção nessas duas sub-regiões, fica mais fácil reconhecer o nosso peso específico.

3. Mas, não podemos perder de vista o seguinte: a nossa relevância económica no continente africano, e nas duas sub-regiões, não se traduziu ainda num grande fluxo de comércio no seu interior, já porque temos relações comerciais privilegiadas com países de outros continentes, o americano, o europeu, o asiático, com excepção para algumas trocas comerciais que realizamos com a África do Sul. Tudo o resto é paisagem. Infelizmente, esse é o modelo da maioria dos países africanos: não trocam quase nada entre si.

4. Como somos muito dependentes da produção mineral, fomos mais uma das vítimas da crise económica que se instalou no mundo, crise essa que se acentuou em meados do ano de 2008. As nossas autoridades tardaram em reconhecer a nossa vulnerabilidade, e talvez isso tenha atrasado a tomada de medidas para reduzir os seus danos.

5. Ainda em 2009, e durante algum tempo, ouviram-se entre nós discursos demasiado optimistas, muitas vezes, roçando mesmo a sobranceria e a arrogância, que é o fruto da cultura que se instalou entre nós. Quiseram fazer-nos crer que éramos “especiais”, que os males que atacam os outros nos deixavam imunes, passavam ao nosso lado… Depois, sobreveio o susto. Começámos a tomar consciência da necessidade de diversificarmos a nossa economia. Mas, creio que ainda estamos no campo das intenções.

6. Activar (ou reactivar) determinados sectores económicos é uma tarefa quase hercúlea. Na maioria dos casos, exige a mobilização de volumosos investimentos. Para que eles se realizem, há que ter disponíveis recursos de todo o tipo: materiais, financeiros e humanos. Não basta ter vontade. Alguns desses quesitos escapam ao nosso controlo, são mais de âmbito internacional.

7. Para o ano que agora acaba, fizeram-se múltiplas previsões. Algumas instituições internacionais disseram que Angola conheceria uma profunda recessão económica, com o nosso PIB a experimentar taxas de crescimento negativas. Também houve quem tivesse apontado para um crescimento nulo. Mas, o nosso governo resistiu como pôde a esse pessimismo que vinha de fora. Assim, da boca do Ministro da Economia, ouviram-se previsões positivas, se bem que muito distantes dos valores atingidos nos últimos 6 anos. A previsão mais optimista que se lhe ouviu foi a de que cresceríamos a uma taxa nunca inferior à do nosso crescimento demográfico.

8. Uma instituição científica nacional foi ainda mais arrojada, avançando com uma perspectiva de crescimento na ordem dos 6%. Por fim, e já na recta final do ano, veio de novo à liça o Ministro da Economia, mas com discurso oficial mais moderado. Para o Ministro Manuel Nunes Júnior, em 2009, teremos um crescimento de somente 1,3%, percentagem que fica claramente abaixo do crescimento demográfico. Quer então dizer que, em termos per capita, piorámos.

9. O remate final foi dado pelo Presidente da República, aquando do 6º Congresso do MPLA. Nesse conclave, o PR afirmou que mais de 60% dos angolanos vivem abaixo do limiar da pobreza, uma pobreza que, seguramente, se acentuou com o mau desempenho económico do ano que está a findar. O Presidente da República falou também, entre outras questões, das degradantes condições sanitárias, dos elevados níveis de analfabetismo, da baixa escolaridade geral da nossa população. Se mantivermos este perfil, não iremos lá, não chegaremos ao desenvolvimento. Pelo menos, nos próximos tempos.

10. Os relatórios internacionais, e também alguns estudos realizados internamente, vêm demonstrando a enorme distância que existe entre a riqueza dos mais ricos e a pobreza dos mais pobres. Este “gap”, denominado na linguagem económica de “Índice de Gini”, não deixa dúvidas: somos um país que cresce cada vez mais de um modo assimétrico, um país onde a riqueza e o rendimento estão a ser muito mal distribuídos entre a população.

11. Eu penso que essa má distribuição decorre da lógica com que funciona o governo, e que se inspira na ideia do partido político que o suporta. Isto é, a prioridade é fazer ricos e não para combater a pobreza, uma prática económica que tem respaldo no duvidoso desígnio político de assim se garantir melhor a defesa do interesse nacional.

12. Ainda tenho dúvidas sobre a validade absoluta da premissa de que os ricos são o garante da soberania nacional. Para mim, continua válida a asserção de que o capital não tem pátria, de que ele se instala ali onde ele é mais lucrativo. Torna-se, assim, fácil compreender o porquê de tão volumosos investimentos de americanos, por exemplo, na China ou no Japão, ou o fluxo de capitais russos para a Europa. Isso também ajuda-nos a melhor perceber o que está por detrás das crescentes parcerias entre os nossos neo-capitalistas e o capital estrangeiro, a todos os níveis.

13. O interesse nacional está, sim, mais protegido quando temos um maior nível de satisfação geral; quando há maior equilíbrio entre as regiões; quando possuímos uma classe média de base larga; quando a elite pensante é dinâmica e crescentemente autónoma; quando o país possui estruturas governativas sólidas e democraticamente organizadas. É todo esse conjunto de circunstâncias que gera elites económicas patrióticas. Elas criam-se nessa prática e nessa cultura.

14. Não posso deixar de assinalar o facto de, finalmente, o nosso governo ter chegado a um entendimento com o Fundo Monetário Internacional. Um entendimento que estabeleceu a cedência de um empréstimo de usd 1.4 mil milhões, com vista a equilibrar a nossa fragilizada Balança de Pagamentos.

15. Logo de seguida, e talvez movidos por um falso pudor, alguns governantes saíram à rua para dizer que o nosso governo não tinha feito concessões ao FMI. Veio depois a constatar-se que pelo menos algumas das exigências do FMI tinham sido contempladas. A prová-lo está o acordo para a colocação em Angola de dois funcionários superiores dessa proveniência, um junto do Ministério das Finanças, outro no BNA. Isso inspira a seguinte questão: Então, dá ainda para dizer que somos “especiais”? Aconselho, pois, que se dê um basta à cultura da sobranceria e da arrogância!

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

OS DEMOCRATAS DE PACOTILHA

1. No dia 7 deste mês, ouvi um discurso que colocava pontos de interrogação sobre a seriedade e até mesmo a legitimidade de certas organizações da sociedade civil. No discurso, ficou implícito que se tratava de organizações geralmente não comprometidas com o regime. Prevejo, pois, dentro em breve, o desencadear de uma nova cruzada contra tais organizações, uma prática que já é habitual. Oralmente, ou através de artigos de opinião, os “guardiães do templo”, irão, pois, expelir verdadeiras labaredas…

2. Seguramente, os propagandistas de serviço estarão já a esquadrinhar, em busca das melhores formas para manchar a imagem das organizações, acusando-as das mais abjectas mentiras: por exemplo, de serem desestabilizadoras da acção do governo, ou até mesmo de conspirarem para servir interesses estranhos ao povo angolano. É assim que o aparelho funciona…

3. Estranhamente, o discurso traçou também um compromisso com os princípios e os valores da esquerda democrática.

4. Por norma, a esquerda democrática tem nos movimentos sociais alguns dos seus principais aliados. Aqui entre nós, os movimentos sociais são tidos como autênticos adversários; não poucas vezes, como os verdadeiros inimigos. Há, pois, uma forte contradição entre esse discurso teórico e a prática política.

5. Integrar a chamada esquerda democrática implica um forte compromisso com determinados valores e princípios. Não basta aceitar formalmente a pluralidade partidária, é também necessário agir no sentido de que essa pluralidade seja viva e dinâmica.

6. Os democratas dão espaço e alento à pluralidade partidária. Para os democratas de esquerda, é também essencial que os cidadãos se organizem, se associem em função de interesses específicos. Os democratas de esquerda não impõem amarras nem impedem a acção dos movimentos sociais.


7. É com enorme estranheza que vejo os nossos “novos” democratas de esquerda terem entre os seus “amigos do peito” precisamente partidos com um longo historial antidemocrático, partidos que odeiam a democracia, asfixiando as liberdades individuais e colectivas.

8. Ser adepto sincero da esquerda democrática implica ser adverso aos totalitarismos e às ditaduras. Ser da esquerda democrática é ser solidário com os defensores dos direitos humanos, não é persegui-los. Ser democrata de esquerda é ser contra os regimes que violam sistematicamente os direitos mais essenciais da pessoa humana, contra os que pisoteiam o princípio sagrado da liberdade de expressão.

9. A esquerda democrática é a guardiã universal dos valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Ela está sempre aberta à livre iniciativa, mas, também, à inovação e ao progresso. A esquerda democrática não é rancorosa.

10. Um democrata de esquerda não faz tábua rasa da história, ele assume o seu percurso e respeita a memória dos seus teóricos e dos seus artífices. Não é prática da esquerda democrática tentar “apagar” os nomes daqueles que contribuíram para a sua estruturação e para o seu desenvolvimento. Por isso, na esquerda democrática vê-se uma vasta galeria de pensadores. Ela não se coaduna com a cultura do pensamento único, nem com o culto da personalidade. Não se tem apego ao Chefe, porque, para os democratas de esquerda, os chefes são transitórios, e revezam-se à medida que o tempo passa.

11. Os líderes dos partidos democráticos sujeitam-se ao contraditório e aceitam ser questionados. Eles não são eternos, nem se eternizam no poder. Muito menos se socorrem de métodos capciosos para distrair o povo… A demagogia e o populismo têm limites.

12. A esquerda democrática tem um sólido apego ao princípio da paz, e procura alargar o espaço das liberdades. Tem respeito pela diferença e pela singularidade de cada um.

13. Hoje, muitos dos que abusivamente se arrogam à condição de integrantes da esquerda democrática são precisamente os que, ainda há bem pouco tempo, se auto-proclamavam arautos da ditadura, fosse ela “ditadura do proletariado”, fosse a dita “ditadura democrática revolucionária”.

14. Foram os agora democratas que nos impuseram um regime de partido único. Aí prevalecia a exclusão, era fortemente repressor. Foram os neo-democratas que encheram as prisões de prisioneiros de consciência, eliminando do mapa os que se lhes opunham. Por isso, condenaram o país a um medo atávico que emudece muitas vozes, tementes ainda de um regresso ao passado de terror.

15. Muitos dos que hoje se reclamam da esquerda democrática agem, por vezes, como agiria um qualquer “cabeça rapada”: para nos distraírem do essencial, exaltam um patriotismo de algibeira, o que redunda, depois, no estímulo à xenofobia.

16. São esses os nossos “democratas de pacotilha” que descuram os interesses dos sectores mais frágeis da nossa sociedade. Reprimem violentamente e despojam os pobres dos seus parcos bens. Em nome duma suposta modernização da sociedade, os nossos “democratas de pacotilha” desalojam os pobres das suas já míseras habitações, sem cuidarem antes de criar condições para os acolher com algum conforto e dignidade. São eles também que confundem o interesse nacional com o enriquecimento ilícito.

17. O espaço dos democratas de esquerda é um espaço ideológico, político e cultural que tem história. Ele é dos principais responsáveis pelo actual formato da humanidade. O espaço dos nossos “democratas de pacotilha” é um espaço defunto que a história rejeitou. O espaço privilegiado dos nossos “democratas de pacotilha” foi deitado para o caixote do lixo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O PASSEIO DOS DITADORES

1. Encontrava-me na Costa do Marfim – a participar numa acção de formação promovida pelo Banco Africano de Desenvolvimento – quando o Coronel Lansana Conte tomou o poder na Guiné-Conacry. São já passados 25 anos. Mesmo assim, e com tão longo distanciamento, ainda me recordo da estupefacção que se assolou de mim, quando soube da queda do regime do Presidente Ahmed Sékou Touré, rendido por uma Junta Militar. Na altura, colocava-se ainda a hipótese de ser substituído por um membro da sua família, que estava na forja.

2. Para mim, os regimes militares são sempre uma grande incógnita, mesmo que comecem por prometer mundos e fundos… Fica sempre tudo em aberto. Não há nada que não possa acontecer, até mesmo a instalação de uma ditadura sanguinária e depredadora…

3. Juntamente com Kwame Nkrumah, do Ghana, Leopold Senghor, do Senegal, Ahmed Ben Bella, da Argélia, Julius Nyerere, da Tanzânia, Patrice Lumumba, do Congo Kinshasa, nos finais dos anos da década de 1950, início da década de 1960, Ahmed Sékou Touré ajudou a tingir com cores da esperança o mapa das novas nações africanas independentes. De certo modo, Sékou Touré representava a irreverência de uma nação emergente, confrontado que estava com as pretensões hegemónicas da antiga potência colonial.

4. Para muitos, a figura de Ahmed Sékou Touré tinha um sinal contrário à do então Presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouet-Boigny. Houphouet-Boigny era tido como muito subserviente, era visto como a expressão acabada de um certo enfeudamento aos desígnios neo-coloniais franceses. Mas, a esperança que se depositou em Ahmed Sékou Touré mostrou-se um logro, pois, fez questão de criar – e alimentar até ao fim dos seus dias – um regime despótico, que empobreceu ainda mais o seu país, marcando-lhe o destino até hoje.

5. Proveniente do movimento sindical, Sékou Touré poderia ter compreendido e assimilado melhor a cultura do respeito pela diferença e da pluralidade de ideias. Mas, Sékou Touré tornou-se o protagonista de um dos regimes africanos mais implacáveis para com os seus adversários. Durante o seu longo consolado de 27 anos, eliminou-os. Inclusive, mandou matar o seu compatriota Diallo Telli, um diplomata respeitado que se tornou no primeiro Secretário-geral da Organização de Unidade Africana, a OUA.

6. Depois da morte de Sékou Touré, o novo regime de Lansana Conte expôs aos olhos da imprensa e do mundo o campo de concentração de Boiro. Era ali onde os seus esbirros torturavam e assassinavam todos quantos se mostrassem inconvenientes. Os direitos humanos, assim como o direito à diferença não tinham, pois, lugar na pauta dos valores e dos princípios políticos de Ahmed Sékou Touré.

7. Lansana Conte foi outra fraude política. Instalou-se no poder durante 24 anos, e cometeu as mesmas tropelias que o seu antecessor. Reprimiu com inusitada violência os que se lhe opunham, inclusive, muitos dos que o ajudaram na ascensão ao poder. Qualitativamente, os dois eram iguais.

8. Quando pegou a moda da implantação de sistemas multipartidários em África, tal como a maioria dos seus homólogos, Lansana Conte também organizou eleições e ganhou-as sempre. Ganhou as eleições de 1993, também as do ano de 1998, bem como as de 2003. Nestas últimas, teve expressivos 96% dos votos.

9. Infelizmente, esta é a matriz política preferida das lideranças africanas: quem está no poder, invariavelmente, ganha as eleições. De seguida, vêm os aplausos da comunidade internacional, a começar pelas instituições africanas. Afinal, o que interessa é a simples aparência, a legitimação formal dos poderes instituídos. É com quem está no poder que interessa continuar a negociar…

10. As eleições em África, realizadas na maioria das vezes com o suporte financeiro da comunidade internacional, estão a tornar-se um mero teatro, algo cómico, mas pode descambar numa tragédia… As eleições africanas, tidas como “geralmente livres e justas”, estão a ditar o fim dos sonhos democráticos ainda alimentados por muitos. Essas eleições são, afinal, o instrumento apropriado para matar as democracias emergentes. Elas não contribuem para o aprofundamento de regimes democráticos, antes pelo contrário, servem para estreitar o espaço político, para retirar de cena as oposições, até mesmo para as ridicularizar…

11. Como é possível manter activos regimes democráticos, quando os partidos governantes – ou os seus candidatos – recebem votações esmagadoras de 76%, de 82%, de 96%, de 97%? Esta questão deveria merecer uma profunda reflexão entre os políticos, os politólogos, os analistas africanos.

12. Será que os africanos se ajustam melhor ao esquema do pensamento único? Será que os seus líderes governantes são de tal modo esclarecidos e clarividentes que, por artes mágicas, conseguem satisfazer todos os desejos e anseios dos seus povos? E porquê que isso não sucede nos países mais desenvolvidos, onde o nível de satisfação material e espiritual das populações é maior?

13. Tal como aconteceu com Lansana Conte, muito recentemente, o actual Presidente da Guiné-Equatorial, Teodoro Obiang Nguema, venceu as eleições presidenciais com mais de 97% dos votos escrutinados. Será que isto também não quer dizer nada?

14. É bom recordarmos que Obiang Nguema governa o seu país há mais de 30 anos, e que tem imposto o seu regime muito à custa da repressão… Hoje, grande parte da riqueza nacional da Guiné-Equatorial, conseguida pelo “milagre do petróleo”, está nas mãos da sua família.

15. O açambarcamento da riqueza de todos por um punhado de indivíduos ligados umbilicalmente aos poderes instituídos, está a tornar-se uma constante. Esses títeres dominam a economia, dominam os meios de comunicação social, influenciam todas as decisões. Muitas vezes, até as decisões… É lá, é aqui, é em todos os nossos países. Este é um polvo que se alastra. Esta é uma gangrena que destrói as nossas sociedades.

16. Depois da morte de Lansana Conte – vai para perto de 1 ano – sucedeu-lhe, também por golpe militar, o Capitão Moussa Dadis Camara. Como sempre, este prometeu restaurar a democracia, organizar eleições livres e transparentes, e, depois, regressar aos quartéis. Acreditou nele apenas quem é ingénuo, ou quem não conhece a recente história africana. Em 1 ano, Moussa Dadis Camara adaptou-se ao poder, tomou-lhe o gosto… Nos últimos tempos, virou o disco e passou a dizer que iria concorrer às eleições presidenciais. Naturalmente, concorrer para as ganhar, e com a percentagem a que agora a África nos habituou. É isso que nos envergonha…

17. A população da Guiné-Conacry saiu à rua e, como habitual, não se respeitou o direito á liberdade de expressão: as forças militares dispararam indiscriminadamente, matando perto de duas centenas de populares, num acto que causou indignação nacional e internacional.

18. A Guiné-Conacry e outros países africanos continuam numa encruzilhada: ainda estão em busca de um rumo; vivem um processo de auto-flagelação; manifestam completa inadaptação aos valores e aos princípios democráticos. O resultado mais recente foi o atentado agora sofrido por Moussa Dadis Camara. Um subordinado tentou assassiná-lo, possivelmente para ocupar o seu lugar e tentar ele também eternizar-se no poder.

19. A eternização no poder é uma triste vocação dos líderes em África. É, também, a traição ao sonho de uma África livre de ditadores.

20. Os ditadores só largam o poder quando morrem. Umas vezes, eles morrem de causas naturais. Outras vezes, eles são removidos à força por outros candidatos a ditadores, que os matam. É a África que definha, e fica-se com a ilusão de que alguns países se desenvolvem, apenas porque possuem riquezas naturais no seu subsolo.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A CIMEIRA DO CLIMA

1. Aqui vai um dado revelador: as economias ditas emergentes possuem já uma taxa de crescimento do consumo de energia maior que a dos países desenvolvidos. Alto aí! Eu não disse que as economias emergentes consomem mais energia que os países desenvolvidos. O que eu disse foi que a taxa de crescimento do consumo energético é mais veloz no primeiro que no segundo grupo de países. Confundir esta leitura pode acarretar interpretações erróneas, e pode até mesmo confundir o fenómeno político e económico mundial.

2. Aqui vai mais um dado: a grande aceleração do consumo de energia verificou-se, sobretudo, em alguns países asiáticos – de que podemos destacar a China e a Índia – mas, também, em países da América Latina, com um especial realce para o Brasil, a Argentina e o México.

3. O aumento do consumo de energia é um indicador que pressagia o crescimento da economia. Se associado ao aumento de outros consumos como, por exemplo, de aço e de algumas outras matérias-primas, então, pode indiciar um processo de industrialização acelerado. Mas, há também o reverso da medalha, ou seja, determinados consumos energéticos podem ter implicações negativas sobre a preservação do ambiente, concomitantemente, sobre o futuro do nosso planeta.

4. Daí que se veja hoje como determinante a presença de certos países, – os ditos emergentes – na Cimeira das Nações Unidas que terá lugar em Copenhaga, na Dinamarca, dentro de dias. Esta Cimeira, já justamente denominada “Cimeira do Clima”, centrar-se-á exclusivamente sobre as medidas a serem tomadas para que se reduzam as emissões de gases poluentes causadores do chamado Efeito Estufa.

5. O tema do ambiente anima numerosos debates, quer pelas suas implicações políticas, quer pelas económicas, quer mesmo até no que diz respeito aos equilíbrios entre o homem e o meio envolvente.

6. Os ambientalistas – que são aqueles que possuem uma melhor percepção sobre o fenómeno e as suas implicações – estão a dar tudo por tudo, para influenciarem as decisões. O mesmo sucede por parte de alguns lobbies económicos, mais interessados geralmente nos seus resultados imediatos, nem sempre tendo em devida conta a perspectiva do longo prazo, a sustentabilidade do crescimento económico. Mas compete aos políticos casar e coordenar esses interesses contraditórios.


7. Estamos, pois, a poucos dias da abertura da Cimeira de Copenhaga, e alguns países individualmente, ou mesmo até blocos de países, vão proferindo declarações que fazem alimentar expectativas positivas sobre os resultados. Por exemplo, a União Europeia já disse que irá avançar com uma proposta de redução das suas emissões poluentes, até ao ano de 2020, na ordem dos 20% – e pode, inclusive, chegar aos 30%, caso a reunião da Dinamarca aposte num compromisso ambicioso; a Noruega foi ainda mais longe, ao propor uma taxa de redução próxima dos 40%; por sua vez, o Japão assume uma taxa de redução de 25%.


8. Antes, instalou-se o receio de um fracasso em Copenhaga, dadas as dificuldades reconhecidas de os Estados Unidos da América estarem, ou não, em condições de assumir um compromisso quantitativo, pelos seus dilemas internos. Outra grande dúvida advinha da vontade da China, actualmente o maior poluidor mundial, comprometer-se com uma qualquer taxa de redução de emissões poluentes que, eventualmente, pusesse em causa o seu espectacular crescimento económico.

9. Porém, na semana que findou, surgiram declarações animadoras. Os Estados Unidos da América deram a conhecer que avançarão com a taxa de redução de 17%, afinal, a meta que foi aprovada por uma das duas Câmaras do Congresso norte-americano, a Câmara dos Representantes, contrariando, porém, os 20% aceites pelo Senado. Na sequência de todas essas declarações, as autoridades chinesas surpreenderam o mundo ao anunciarem a disposição de reduzirem as suas emissões numa percentagem de entre 40 a 45%. Neste clima de optimismo, abrem-se agora boas perspectivas para a cimeira mundial, uma etapa crucial para a definição do futuro da humanidade e do nosso planeta.

10. São, pois, números para todos os gostos e para todos os interesses. Mas, há que ter atenção sobre o que eles eventualmente possam esconder. Por exemplo, a taxa apresentada pela União Europeia tem como referência o ano de 1990, enquanto que a taxa de redução que foi anunciada pelos EUA tem como referência o ano de 2005. Para quem é leigo, pode parecer que não é nada, mas será de facto uma diferença a não ter em conta?

11. Uma coisa é falar em emissões poluentes do ano de 1990; outra coisa é ter-se como referencial as emitidas 15 anos depois. São taxas distintas, e podem não se equivaler. Mas, essa é uma matéria para os especialistas.

12. Vejo outra diferença na linguagem que se está a usar para se anunciar a vontade de reduzir as emissões. De um modo geral, todos os proponentes falam em gases causadores do Efeito Estufa. Mas, a notícia posta a circular sobre a determinação chinesa reporta somente o dióxido de carbono. É que são vários os gases que provocam o Efeito Estufa: é o dióxido de carbono – tido justamente como o maior causador antropogénico do aquecimento global – mas é também o gás metano, o óxido de azoto, os hidrocarbonetos fluorados, os hidrocarbonetos perfluorados, o hexafluoreto de enxofre.

13. A desflorestação é outra prática que também tem grande quota de responsabilidade no aquecimento global. De tal modo que foi objecto de uma cimeira prévia, em Manaus, no Brasil, o estado brasileiro onde se instala grande parte do pulmão do nosso planeta, a floresta da Amazónia. Apela-se igualmente ao contributo dos países da Bacia do Rio Congo, assim como a Indonésia, detentores de vastas florestas.

14. O petróleo é ainda o maior participante na produção de energia – creio que ele se encarrega de 40% da produção total de energia, embora, nos últimos anos, se tenha assistido a uma derivação acentuada para a utilização do gás natural e outros combustíveis, especialmente quando se trata da geração de electricidade. Porém, no que diz respeito aos transportes, o recurso ao petróleo ainda permanece sem um substituto credível à vista. Pelo menos, para os anos que se avizinham.

15. A proposta avançada pela China, de diminuir de entre 40 a 45% das emissões de gás carbónico, até ao ano de 2020, só será factível se aquele país reduzir substancialmente o seu consumo de carvão. É que a China e a Índia possuem reservas incalculáveis deste combustível fóssil, ele que é tido como o que mais dióxido de carbono produz.

16. Para além de grande gerador de electricidade, o carvão tem também outros usos industriais. Os chineses construíram, e ainda continuam a construir, muitas centrais eléctricas que usam carvão. Presentemente, estão também empenhados na construção de inúmeras barragens hidroeléctricas, mesmo até centrais nucleares, e entraram de um modo acelerado na produção de energia proveniente de outras fontes renováveis e não poluidoras. Daí, talvez, a recente tomada de posição que surpreendeu o mundo: o grande poluidor ambiental avançou uma proposta arrojada e de grande impacto mediático. Será uma atitude sincera? Ou um mero jogo propagandístico?

17. Sobre essa e outras matérias, fica ainda muito por dizer. Não tenho tempo, nem me resta espaço, embora eu tenha de sobra uma enorme vontade de continuar a abordar este assunto que é crucial para a nossa sobrevivência, e para a existência do nosso planeta.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

OS QUILOMBOS DE ANGOLA E DO BRASIL

Nos dias 17, 18 e 19 de Setembro, participei no V Encontro Anual da ANDHEP (Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação). Ele teve lugar no Brasil, na cidade de Belém, capital do estado do Pará, e o seu Lema foi “Direitos Humanos: Democracia e Diversidade”. Fizeram-se presentes académicos brasileiros ligados a diversas Universidades, bem como algumas individualidades angolanas e moçambicanas ligadas igualmente a Universidades. Foram debatidas questões fundamentais para o actual momento brasileiro, como: “Política Criminal, Segurança Pública e Direitos Humanos”, “Direitos Humanos e Povos Indígenas”, “Educação para os Direitos Humanos”, “Memória e Justiça de Transição”, “Educação Escolar Indígena”.

Para além da questão Indígena (que ocupou muito espaço do debates), abordou-se ainda a problemática das “Comunidades Remanescentes dos Quilombos”, um tema que, de algum modo, nos remete para a ancestralidade angolana, uma vez que muitos dos povos negros brasileiros provêm de Angola – a própria expressão “Quilombo” tem origem no kimbundo, significando “Povoação”.

No Brasil, falar em “Quilombo”, conduz imediatamente à figura de Zumbi dos Palmares, o líder negro mais consagrado dos que opuseram uma feroz resistência à escravidão nas Américas.

Para nós, angolanos, o mês de Novembro tem um enorme simbolismo: foi no seu décimo primeiro dia que ascendemos à independência. Para os negros brasileiros ou seus descendentes, e também para os activistas dos direitos humanos, o mês de Novembro tem igualmente um grande significado, dado que, no seu vigésimo dia, no ano de 1695, aos 40 anos de idade, morreu Zumbi dos Palmares, depois de mais de 20 anos de resistência às sucessivas incursões de forças militares (portugueses, e até mesmo holandeses), bandeirantes, e mercenários. Zumbi recusou a escravidão a que estavam sujeitos os negros levados para o Brasil, por isso lutou até à exaustão. Zumbi tombou após ter sido traído por um dos seus principais comandantes. Foi preso, degolado e a sua cabeça ficou exposta publicamente, no Recife, como a prova de que, finalmente, se tinha extirpado o “mal”.

Por ironia do destino, precisamente 380 anos depois do sacrifício supremo de Zumbi dos Palmares, o nosso país tornou-se independente, resgatando assim um direito que, de algum modo, se tornou a bandeira Zumbi no continente americano. Zumbi dos Palmares era descendente de angolanos.

“Quilombo” foi a designação por que passaram a ser chamados todos os núcleos habitacionais e comerciais que abrigavam os escravos fugidos das fazendas (engenhos de açúcar). Eram, pois, locais de resistência à escravidão. Muitos deles tornaram-se, porém, também locais de refúgio para índios e brancos pobres, desprovendo, pois, a ideia de um carácter eminentemente rácico desses locais de resistência. Tal é o caso do “Quilombo dos Palmares”, situado na Serra da Barriga, no estado de Pernambuco.

A visão portuguesa da época remetia para a categoria de “Quilombo” apenas os núcleos isolados compostos por “negros fugidos”, isolados dos grandes centros urbanos ou das fazendas. Porém, a antropologia moderna integra hoje nas “Comunidades Remanescentes de Quilombo” muitos agrupamentos humanos que se constituíram a partir de diversos processos, como, por exemplo, doação de terras, heranças, recebimentos de terras como pagamento por serviços prestados ao Estado, mesmo até agrupamentos populacionais que se formaram dentro de grandes propriedades agrícolas depois da abolição da escravatura, ou terras que foram compradas por escravos alforriados ou libertos.

O Grupo de Trabalho sobre Comunidades Rurais Negras, criado pela Associação Brasileira de Antropologia, na tentativa de auxiliar a aplicação do dispositivo constitucional nº 68, que define o direito à terra das “Comunidades Remanescentes dos Quilombos”, recusa a definição do”Quilombo” somente a partir da fuga e do isolamento, aderindo, sim, à ideia de resistência e autonomia. Diz, concretamente: “Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogénea. Consistem, sobretudo, em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”. Portanto, o que define os “quilombolas” “é uma identidade étnica, fruto de ancestralidade comum, práticas políticas, religiosas e sociais. É um processo de auto-identificação bastante dinâmico que não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos como a cor da pele, por exemplo.”

A questão do reconhecimento do direito de posse das terras pelas “Comunidades Remanescentes dos Quilombos” é um sério problema de Direitos Humanos, pois muitas dessas terras estão a ser alvo da cobiça por parte do sector agro-pecuário, como recentemente reconheceu, em entrevista a um jornal brasileiro, o Ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República do Brasil, Edson Santos.

Mas, a importância de algumas dessas terras reivindicadas pelos “quilombolas” não se manifesta apenas pela cobiça que elas despertam no sector agro-pecuário, são também interesses vinculados à exploração mineral. Lá existem muitas pedras preciosas, e até mesmo urânio – reconheceu o Ministro, destacando, igualmente, um eventual conflito de interesses entre as comunidades e o próprio Estado brasileiro. Por exemplo, em determinada área habitada por “quilombolas”, no estado do Maranhão (em Alcântara), “existe o melhor lugar do mundo para o lançamento de satélites”. A Agência Espacial Brasileira instalou em terras reivindicadas pelos “quilombolas” um Centro de Lançamento. E acrescentou: “A solução do problema passa pela conjugação dos dois interesses, o do Estado e o das comunidades”.

Estes conflitos brasileiros remetem-me para os nossos actuais conflitos de terras. Estamos numa época em que se desalojam comunidades inteiras nas áreas periféricas das cidades (com destaque para Luanda) para, aparentemente, dar resposta à necessidade de modernização da nossa sociedade, construindo-se os já famosos condomínios, muitos deles de luxo. É visível, porém que, por detrás destas acções, escondem-se os fortes interesses imobiliários titulados por novos-ricos criados à custa da sua forte ligação ao aparelho de estado. Só que, em Angola, infelizmente, o Estado não manifesta a preocupação social que se descobre nas actuais autoridades brasileiras. Aqui, a tónica principal é destruir, sem o cuidado de antes realojar em condições dignas de seres humanos. Há, pois, uma clara violação de um dos mais fundamentais direitos humanos, o direito a uma habitação digna. E quando se realoja, descuidam-se outros direitos do cidadão. Alguns dos desalojados perdem os seus empregos, deixam de ter acesso à escola, ou aos cuidados primários de saúde.

É claro que não estamos ainda perante a figura dos “quilombolas” – nem coisa parecida, já porque a sua génese das nossas comunidades de desalojados é diferente. Todavia, não tenho dúvidas de que, caso se prossiga a política cega de desapropriação e de desalojamento cego das comunidades mais pobres, poderemos ter, no futuro, segmentos sociais a exercitar movimentos de resistência que nos farão então lembrar, seguramente, os Zumbis e outros mártires de épocas passadas.