quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A BASE DE ALGUNS DOS CONFLITOS

1. As tropas da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte), maioritariamente integradas por soldados norte-americanos, estão a levar a cabo (aparentemente com êxito) uma forte ofensiva sobre Marjah, região situada na província de Helmand, no sul do Afeganistão. O objectivo declarado da ofensiva militar é o de repor sob controlo do Estado afegão uma das áreas que mais tem servido como reserva económica para os rebeldes talibãs. A importância desse território deriva do facto de ser lá onde se produz o ópio e a heroína que geram receitas para financiar a insurgência talibã.

2. A persistência da insurgência talibã só pode ser entendida se a analisarmos numa perspectiva global, ou seja, se não perdermos a noção do conjunto. É que, vermos a árvore e esquecermo-nos da floresta, reduz o ângulo de visão, confundindo a abordagem.

3. Como sucede com outros conflitos que, volta e meia, eclodem em África (ou em outras partes do mundo), esta rebelião armada possui, pelo menos, três elementos que a suportam: goza de algum apoio popular, tem uma retaguarda segura, e, inevitavelmente, é mantida à custa de muito dinheiro. Dificilmente um grupo de guerrilha pode sobreviver sem esses três suportes essenciais. É assim no Afeganistão mas, também, na Serra Leoa, em Angola, ou mesmo na Colômbia.

4. Procuremos, pois, procurar entender melhor o porquê da forte implantação dos rebeldes talibã na região de Marjah, na província afegã de Helmand. Ironicamente, trata-se de uma região antes inóspita, mas que se tornou bastante fértil graças a um projecto de cooperação lançado pelos americanos nos anos 50. Por meio desse projecto, os Estados Unidos construíram canais de irrigação, o que facilitou a fixação de muita população. Os camponeses lançaram-se, então, no cultivo de vastas áreas de papoila, a planta de que se extrai o ópio e a heroína que, depois, são lançados no mercado.

5. A província de Helmand faz fronteira com o Paquistão. A região do Paquistão fronteiriça com Helmand é maioritariamente habitada por povos da etnia pashtum, tal como Helmand. Os barões da droga, por regra são de etnia pashtun e muçulmanos sunitas, daí que transitem sem obstáculos nesse espaço etnicamente comum dos dois países. É esse suporte étnico que permite aos rebeldes talibãs transformar a região num dos seus principais focos, conseguindo desestabilizar tanto o território do Paquistão, como o do Afeganistão.

6. Não é, pois, por um mero acaso que os mais sangrentos atentados de que se ouve hoje falar têm lugar precisamente naquela área do território paquistanês. Sem o envolvimento da população, a guerrilha dificilmente sobreviveria. Para vencerem esta guerra, a NATO e, em especial, os EUA, terão que conquistar alguma simpatia junto da população (por isso, deverão evitar atingi-la). Devem, igualmente, cortar a retaguarda paquistanesa, assim como aniquilar o tráfico de ópio e heroína, que constitui a sua base económica.

7. A Serra Leoa e um pequeno país da África Ocidental que inspirou um filme hoje famoso, quer pelo seu conteúdo, quer por ter tido como protagonista um dos actores mais mediáticos de Hollywood: Leonardo di Caprio. Denominado “Diamante de Sangue”, o filme mostra a estreita relação entre movimentos rebeldes e o tráfico de diamantes.

8. Já há tempos fiz referência, aqui neste espaço, ao modo como a Libéria foi constituída: por subtracção de território à Serra Leoa originária. A fundação da Libéria teve como pano de fundo o erigir de um espaço para acomodar ex-escravos provenientes da América. Na altura, expliquei, também, o fundo de certas motivações, inclusive, as de carácter ideológico e rácico. Tal como a vizinha Libéria, a Serra Leoa reteve também alguns desses escravos libertos. Por imposição britânica. Tal como na Libéria, os ex-escravos transferidos para a Serra Leoa passaram a ocupar os mais altos postos da administração.

9. No início doas anos 90, fruto da corrupção que se arrastava no seio do Governo do presidente serra leonês, Joseph Momoh, reforçada pelos problemas administrativos que eclodiram nas minas de diamantes, iniciou-se uma muito sangrenta guerra civil na Serra Leoa, que durou cerca de 10 anos. O chefe rebelde, Foday Sankoh, fundador da RUF (Frente Unida Revolucionária), beneficiou do apoio do líder da Libéria, Charles Taylor, passando a controlar as províncias de onde se extraem os diamantes.

10. A guerra civil na Serra Leoa foi das mais sangrentas e dramáticas do nosso continente, tendo, inclusive, envolvido inúmeros meninos-soldados. As imagens de homens e mulheres decepados de braços e pernas ainda hoje chocam o mundo e fazem-me pensar sobre os limites da maldade humana.

11. A guerra civil que Angola viveu por vários anos ficou bastante ilustrada pelo grau de destruição que todos conhecemos, assim como pelo envolvimento internacional que a história regista. Foi a exploração artesanal dos diamantes por parte da UNITA que, pelo menos em parte, permitiu manter o conflito por muitos e dolorosos anos. Será, porém, um erro pensar que só o dinheiro seria capaz de fazer tudo. A UNITA beneficiou também de apoio popular, e teve uma retaguarda nos países com quem Angola faz fronteira.

12. O conflito que varre a Colômbia tem na sua origem uma disputa ideológica. Até agora, não consegui descortinar qualquer motivação étnica, como sucede nos anteriores. Tido como um dos mais antigos conflitos da América Latina, ele nasceu (numa primeira fase, entre 1948 e 1964) da disputa entre conservadores, de um lado, e a aliança de liberais e socialistas. Porém, em 1964, e por influência da revolução cubana, temendo a radicalização da revolta camponesa, os liberais mudaram de campo, aliando-se aos conservadores. Surgem, neste contexto, as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), sob o comando de Manuel Muralanda, “Tirofijo”, recentemente falecido.

13. Vejamos, porém, a segunda dimensão. O conflito da Colômbia, tal como os anteriores, é também alimentado pelo tráfico, mais concretamente, pelo tráfico de droga.

14. A terceira dimensão. Diz-se que os rebeldes colombianos gozam do apoio dos camponeses das zonas onde estão implantados, e gozam também do apoio das autoridades venezuelanas, que lhes prestam alguma retaguarda.

15. Felizmente, os conflitos em Angola e na Serra Leoa terminaram. O da Colômbia e o do Afeganistão (que se estendeu para o Paquistão) prosseguem. Cada vez que ouço (ou leio) notícias sobre o seu desenvolvimento, penso, de imediato, no princípio segundo o qual uma solução duradoura passa, necessariamente, pela superação dessas três questões: conquistar o povo, cortar a retaguarda, e esvaziar a base económica que os alimenta. Não realizar essas três dimensões, ou negligenciá-las, é contribuir para que os conflitos se mantenham por muitos mais anos.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

“FOI O PRINCÍPIO DO FIM DA INDIGNIDADE”

1. “Foi o princípio do fim da indignidade”. Com esta frase, o Arcebispo Anglicano Desmond Tutu resumiu o significado do dia em que Nelson Mandela foi, finalmente, libertado, há precisamente 20 anos. Começou aí, realmente, o fim do regime do apartheid, um momento histórico que marcou o ruir de um edifício político e social hediondo, construído ao longo de muitas décadas, e que a humanidade, quase em uníssono, reprovou.

2. Estive entre os milhões de pessoas de todo o mundo que acompanharam, pela televisão, o memorável dia 11 de Fevereiro de 1990. Vimos todos, com emoção, Nelson Mandela – de braço dado com a então sua mulher, Winnie – franquear os portões da prisão Victor Verster, seu derradeiro local de detenção. Antes, Mandela passara por outras cadeias, entre as quais a célebre prisão de Robben Island, perto da cidade do Cabo.

3. A libertação de Mandela era como um sonho a tornar-se realidade. Apenas não se emocionou, quem não seguiu a trajectória prisional de Nelson Mandela. Na verdade, a luta de Mandela quase se confundiu com a luta do povo sul-africano contra o regime do apartheid.

4. Cyril Ramaphosa, político e ex-líder sindical sul-africano – hoje mais dedicado à vida empresarial – reconheceu também que a libertação de Nelson Mandela fora o prenúncio da libertação do povo sul-africano. Embora por outras palavras, Cyril Ramaphosa disse, afinal, o mesmo que dissera o Arcebispo Desmond Tutu.

5. “União Sul-Africana” foi o nome escolhido, em 1910, para designar a África do Sul, ainda um Domínio do Império Britânico. A designação “União Sul-Africana” durou 51 anos, até quando, em referendo realizado em 1961, os brancos sul-africanos decidiram proclamar a República da África do Sul, cortando o laço que os ligava à Coroa britânica e à Commonwealth.

6. O regime de apartheid foi sendo construído progressivamente, uma construção que começou ainda na vigência da “União Sul-Africana”. Por exemplo, são contemporâneas da “União Sul-Africana” algumas das normas legais que deram corpo a esse regime. De entre essas normas, talvez a mais conhecida seja o “Regulamento do Trabalho Indígena”, de 1911. Este dispositivo legal considerava crime a quebra do contrato de trabalho por parte de um trabalhador “não-branco”.

7. Antes, em 1899, os portugueses tinham já criado em Angola um documento similar, a que chamaram “Regulamento do Trabalho”. Através de uma verdadeira “engenharia jurídica”, em 1928, o “Regulamento do Trabalho” foi, porém, substituído por um documento mais pomposo, a que deram o nome de “Código do Trabalho Indígena”.

8. O “Código do Trabalho Indígena” ficcionava uma espécie de regime de “trabalho contratual”, contra o trabalho verdadeiramente escravo inserido no “Regulamento do Trabalho” de 1899. Para além da sujeição política, foram práticas como essas que estimularam as revoltas que eclodiram, quase simultaneamente, na África do Sul e em Angola.

9. A grande crise económica mundial de 1929/1933, conhecida hoje como “Grande Depressão”, estimulou a emergência dos regimes fascistas, em Portugal, Espanha e na Itália, e do regime nazista de Adolf Hitler, na Alemanha.

10. Não é abusivo dizer que a radicalização do racismo na África do Sul pode também ser enquadrável nesse contexto político-ideológico internacional, embora, formalmente, o apartheid integral seja uma construção, a partir de 1948, do Partido Nacional. Desde essa altura, e de um modo sistemático, foram elaboradas novas normas jurídicas para suportaram legalmente o endurecimento do regime sul-africano. As pessoas passaram a ser classificadas em função da raça.

11. O Congresso Nacional Africano (ANC) foi fundado em 1912. Em 1950, ele reage contra esse conjunto de iniquidades, apelando à desobediência civil. Emerge, assim, a figura de Nelson Mandela como líder desse movimento de contestação. Nelson Mandela fundara, em 1942, a Juventude do ANC, juntamente com outros dois advogados, Oliver Tambo e Walter Sisulu. O ANC era ainda um partido político legal, na tradição britânica. Pelo contrário, em Portugal e nas suas colónias, proibia-se a criação de partidos políticos. Tinha existência legal apenas a União Nacional, de Salazar.

12. A tentação de alguns políticos africanos para a instalação nos seus países de regimes de Partido Único pode, pelo menos em parte, encontrar respaldo no seu passado de colonizados. Senão, vejamos: Alguns dos processos de descolonização conduzidos pelos britânicos (e mesmo pelos franceses) deram origem a regimes multipartidários. A eliminação dos partidos políticos alternativos decorreu posteriormente, como um fruto dos sucessivos golpes de Estado e da transferência de alguns dos conflitos da Guerra-Fria para o nosso continente. Não é, pois, verdade que todas as independências africanas tenham tido lugar num quadro monopartidário. A descolonização feita atabalhoadamente por Portugal é que unicamente deu origem a regimes de Partido Único.

13. A ilegalização do ANC, e de outros partidos da África do Sul, seguiu-se à reacção de Mandela e seus companheiros ao famoso “Massacre de Sharpeville”, de 21 de Março de 1960, quando a polícia sul-africana atirou a matar sobre manifestantes negros, desarmados, que protestavam contra as iníquas leis do Apartheid. Mandela decide, então, organizar um braço armado com o qual pretendia levar a cabo acções de sabotagem e, se possível, de guerrilha. Por isso, saiu clandestinamente da África do Sul, em busca de apoios junto de países independentes como, por exemplo, Marrocos. É aí que se relaciona com Mário Pinto de Andrade. Existe um testemunho fotográfico dessa relação no livro “Mário Pinto de Andrade – Um olhar íntimo”, de Henda Ducados Pinto de Andrade, onde aparecem, para além de um outro militante do ANC, Rabat Kesha, também Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, Aquino de Bragança, Amália Fonseca. Mário Pinto de Andrade disse-me pessoalmente que, por essa ocasião, foi ele que apresentou Nelson Mandela aos então combatentes argelinos da FLN (Frente de Libertação Nacional).

14. Nelson Mandela foi sempre um homem exemplar e muito firme nas suas convicções. Definiu, claramente, o Regime do Apartheid como o seu alvo, não as raças, muito menos as pessoas individualmente. Foi essa sua clarividência que salvou a África do Sul da catástrofe que se seguiria se a sua subida ao poder tivesse sido acompanhada por uma feroz luta pelo domínio absoluto, tal como aconteceu entre nós. A nós, faltou alguém capaz de nos guiar por caminhos menos espinhosos, quem conseguisse integrar, e não excluir, quem tivesse visão para perceber que a independência era para todos e não apenas para aqueles que perfilhavam as suas ideias e o seu modo e ver a sociedade e o Estado. Faltou-nos um Mandela. Tivemos, e de sobra, os seus contrários.

15. Mandela soube retirar-se a tempo, e fê-lo com as mãos limpas, quer limpas de sangue, quer de dinheiro. Mandela não lutou para ser ele o rico, ou o mais rico – lutou por todo o povo da África do Sul, um país que é um verdadeiro mosaico rácico, étnico e cultural. Não quis substituir a opressão dos outros pela sua opressão. Quando morrer, todos lhe reconhecerão esse mérito. O espírito reconciliador que norteou a sua vida vai ao ponto de ter convidado um dos seus carcereiros para festejarem juntos os 20 anos da sua libertação.

16. Eu li o livro do jornalista John Carlin “O Jogo que Mudou uma Nação”, que deu origem ao filme, hoje é muito falado no mundo, sobre o modo como Nelson Mandela aproveitou o “Campeonato do Mundo de Rugby de 1995” para descomprimir a tensão que pairava sobre a África do Sul. As duas comunidades, a negra e a branca, estavam quase a enfrentar-se numa guerra civil que atiraria por terra todo o esforço de fazer da África do Sul um país para todos. Mandela contou com a colaboração e a cumplicidade do capitão da equipa de rugby da África do Sul, François Pienaar, um bóer, e ambos conseguiram o milagre: evitaram a guerra civil.

17. Mandela não tem seguidores entre os líderes africanos. Entre estes, são inúmeros os que promoveram (ou alimentaram) guerras civis, ou os que assumiram o golpe de Estado como a via expedita para atingir o poder, e os que procuraram (ou procuram) eternizar-se no poder. Quase todos eles têm a corrupção e o nepotismo como a fórmula mágica para se enriqueceram a si, às suas famílias, e o seu séquito de bajuladores.

18. É verdade que a África do Sul ainda possui vários tipos de assimetrias. É verdade que há ainda muita gente a viver na miséria. É verdade que a insegurança é uma das grandes preocupações para quem vai ou vive na África do Sul. Mas, mesmo assim, a África do Sul continua a ser a maior economia do nosso continente. Ela tem potencial para aumentar o nível de bem-estar da sua população – caso os novos governantes do “país do arco-íris” não queriam contrariar os grandes desígnios que nortearam a luta de Nelson Mandela.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O TRÁFICO DE SERES HUMANOS

1. O eventual envolvimento de 10 cidadãos norte-americanos (5 homens e 5 mulheres) no tráfico de 31 crianças haitianas ainda faz manchete na mídia internacional. As televisões de todo o mundo têm mostrado os vários ângulos do problema, e nós vamo-nos familiarizando com os rostos de alguns desses cidadãos, tão repetidas são as vezes que os vemos no ecrã.

2. Não é possível garantir, desde já, que se trata de gente bem intencionada que apenas se descuidou, por não ter tomado as medidas mais adequadas para levar consigo as crianças, para depois lhes dar um melhor destino. Igualmente, não é possível afiançar que estamos diante de criminosos disfarçados de religiosos ou de agentes humanitários, apostados apenas em comercializar 31 inocentes que foram apanhados na teia do tráfico internacional de seres humanos. Todas as hipóteses estão em aberto.

3. Perante qualquer justiça civilizada, os 10 cidadãos norte-americanos ainda gozam da presunção de inocência. A presunção de inocência é um instituto jurídico criado para proteger e salvaguardar os direitos de todo o cidadão que ainda não foi condenado pela prática de um acto delituoso. O inocentar e o condenar são prerrogativas dos juízes, embora eu acredite que, para o cidadão comum, os 10 cidadãos norte-americanos tenham ganho já a imagem do vil criminoso. Tráfico de mulheres e tráfico de menores são fenómenos sociais que preocupam cada vez mais a humanidade e, por isso, têm merecido cuidados redobrados por parte das autoridades de muitos países.

4. Nos últimos tempos, temos assistido, na nossa comunicação social, a um aumento do número de referências a situações de maus-tratos infringidos às crianças em algumas das nossas comunidades. Vai crescendo, também entre nós, o temor da existência de gente que apostou em traficar menores, levando-as depois para outros países, onde são sujeitos a práticas arrepiantes. Vamos ainda tendo conhecimento de notícias sobre a tomada de medidas dissuasoras, pelas autoridades, para a prevenção de tais práticas.

5. Depois do tráfico de drogas, o tráfico de seres humanos, sobretudo, aquele que está centrado em crianças e em mulheres, é hoje o negócio mais lucrativo do crime organizado, ao nível mundial. O UNICEF afirma mesmo que, por ano, se traficam acima de 1 milhão de crianças, o que aconselha (e torna mesmo imperioso) uma reacção enérgica e global.

6. O tráfico de seres humanos tem sofisticado os seus métodos e dispõe de meios cada vez mais modernos e tecnologicamente avançados. Os traficantes promovem, por exemplo, a sua expansão com recurso à Internet.

7. O que sucedeu agora no Haiti não é um facto estranho. Muito menos se trata de algo inédito. Não poucas vezes, os haitianos entregam os seus filhos menores para adopção, como a única alternativa para lhes garantir um futuro melhor, livrando-os assim da miséria centenária que assola aquele país caribenho. A entrega voluntária de crianças para adopção, e mesmo até a doação de sangue – não por razões humanitárias, mas como única alternativa para se conseguir alguma receita – são fenómenos recorrentes entre os habitantes mais pobres do Haiti. Porém, a venda de sangue por parte dos pobres começou a ser mais controlada, quando se colocou em pauta a questão da qualidade e da segurança do produto, face às eventuais doenças que ele poderia esconder.

8. Os impactos sociais do sismo que varreu a capital haitiana e seus arredores são da mais variada ordem, e apenas o decorrer do tempo nos poderá mostrar a sua verdadeira dimensão. Mas, uma coisa é certa: choca-nos ver as imagens de devastação, associadas à turbulência e à agitação que se apossaram da cidade, bem como o seu aproveitamento por marginas consagrados e outros oportunistas. Dá-nos, porém, alguma satisfação ver o ainda que tímido regresso da autoridade do Estado, ou até a participação da comunidade internacional no esforço de normalização da vida naquele desgraçado país.

9. A denúncia do possível envolvimento dos 10 cidadãos norte-americanos na retirada ilícita das 31 crianças haitianas e seu transporte para a vizinha República Dominicana funcionou como uma nódoa na imagem pública da comunidade internacional envolvida no socorro ao Haiti. E tal se torna ainda mais chocante quando se ampliam pelo mundo movimentos de solidariedade para com as vítimas do sismo. São actores de cinema e teatro, são músicos, são desportistas, são intelectuais, são instituições religiosas, são grupos humanitários – todos eles a quererem dar o seu contributo para ajudar a minorar o sofrimento daqueles seres humanos que tiveram a desdita de estar no local errado à hora errada…

10. Mais uma vez, a tragédia humana permitiu dar relevo à parte boa do ser humano. Vão se mobilizando meios humanos, materiais e financeiros que são depois canalizados para o Haiti. Houve também pronta reacção de autoridades públicas e governamentais de alguns países, com os Estados Unidos da América a evidenciarem-se entre todos, como é lógico e como seria espectável.

11. Hoje assume-se que o tráfico de menores é um fenómeno global. O UNICEF sinaliza em milhares as crianças que se transaccionam, por exemplo, entre a Europa Oriental e a Europa Ocidental. Daí serem também crescentes as notícias de sequestros que, depois, alimentam as redes de tráfico. Algumas dessas crianças traficadas são transformadas em mão-de-obra barata, outras são forçadas à prostituição, sofrendo ainda várias formas de violência e abusos sexuais. Referem-se casos de crianças forçadas a praticar actividades criminosas, como roubar ou vender drogas. A adopção ilegal é um outro destino de muitas das crianças traficadas.

12. Os grupos mafiosos que actuam no comércio de crianças só têm êxito e prosperam, porque há quem procure e fique com tais crianças. Melhor dizendo, porque há um mercado consumidor. A Internet facilita os contactos além fronteiras, conectando potenciais vendedores com potenciais compradores. O trafico ilícito de crianças prospera ainda porque existem comunidades onde a pobreza impera de um modo asfixiante e avassalador.

13. Não obstante já exista um enquadramento legal e se desenhem estratégias para a protecção das crianças, no nosso país são muito frequentes as notícias sobre abusos sexuais, exploração e até desaparecimentos misteriosos de crianças. Os jornais e revistas de fim-de-semana trazem à luz tais fenómenos, antes pouco conhecidos.

14. A maioria da nossa população, cerca de 68%, vive na pobreza – e 25% vivem em condições de pobreza extrema. O relatório recentemente publicado pelo Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, em colaboração com a ONG “Save the Children”, chama a atenção para a situação social das crianças angolanas.

15. Não me é possível resistir à tentação de inserir como um quadro resumo essa realidade que potencia os fenómenos sociais mais perigosos: “11% das crianças angolanas são órfãs de um ou dos dois pais; 30% das crianças estão envolvidas nas piores formas de trabalho infantil; 44% das crianças não frequentam a escola; 25% das crianças abandonam a escola; são ainda aos milhares as crianças separadas dos seus familiares; é baixa a percentagem de crianças que possuem registo de nascimento; são também aos milhares as crianças órfãs devido ao SIDA; 45% das crianças já sofreram violência física e 48% sofreram violência psicológica em sua própria casa”.

16. Estes são dados que, eventualmente, careçam de alguma correcção. Contudo, a sua ordem de grandeza é bastante para nos aconselhar a olhar também para a nossa sociedade com o cuidado e atenção que hoje merece o Haiti, assim como as sociedades subdesenvolvidas de um modo geral.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

AUSCHWITZ (Onde homens portaram-se pior que animais selvagens)

1. No dia 27 de Janeiro, passaram-se 65 anos sobre a tomada pelo Exército Soviético do campo de extermínio de Auschwitz. Tratou-se de um acontecimento que pouco (ou mesmo nada) diz às novas gerações.

2. Cada geração tem as suas próprias referências, e esta não é, seguramente, um marco histórico para os jovens de hoje. Os jovens de hoje têm outros cuidados e outras inquietações, são assolados por outros factos, uns de tons mais positivos, outros nem tanto assim. Não é possível comparar épocas, muito menos dizer que houve gerações que apenas colheram louros, que viveram uma vida sem preocupações. A minha geração também conheceu alguns dos horrores dos campos de concentração.

3. Campos de concentração e campos de extermínio, se bem que próximos, não são precisamente uma e a mesma coisa. Qualquer um deles consubstancia flagrantes violações aos direitos do homem, só que, nos últimos, retira-se a vida a um ser humano como se ela não tivesse qualquer valor. Nos campos de extermínio, a vida do homem vale menos que a bala que o executa, ou o gás que o intoxica – está-se abaixo de cão. E que me desculpem os cães, que eu muito prezo.

4. Os campos de concentração e os campos de extermínio sinalizaram – para o mal – o período histórico em que foi estrela o demoníaco Adolf Hitler. Hitler mandou construir os campos de Auschwitz, Dachau, Treblinka, Buchenwald e outros. Criou tais campos não apenas para reprimir, mas também para eliminar todos aqueles que se lhe opunham, ou os de que não gostava.

5. Também Joseph Staline mandou construir campos de concentração na antiga União Soviética, os tristemente famosos Gulags. Staline remeteu para os Gulags prisioneiros de todo o tipo, muitos deles apenas por serem opositores políticos. Os Gulags tornaram-se um dos símbolos do estalinismo.

6. Mas, não foram apenas os regimes nazista e o estalinista que criaram campos de concentração. Por exemplo, o Brasil, depois que declarou guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), criou campos de concentração com o objectivo de lá confinar alemães, italianos e japoneses suspeitos de actividades anti-brasileiras. No mesmo período, e por determinação do presidente Franklim Delano Roosevelt, os Estados Unidos da América abriram igualmente campos de concentração. Um exemplo muito referido é o Crystal City, no estado do Texas, para onde foram enviados prisioneiros alemães e japoneses. No último caso, como consequência do tristemente célebre ataque japonês a Pearl Harbor.

7. No início do século XX, durante a Segunda Guerra dos Bóeres, na África do Sul, os britânicos já haviam erigido campos de concentração, no quadro da sua estratégia de combate à guerrilha bóer. Para tais campos, foram deportados os fazendeiros e seus empregados que apoiavam e abasteciam os guerrilheiros bóeres.

8. O regime colonial e fascista de Salazar não deixou os seus créditos por mãos alheias, e também fez questão de criar os seus campos de concentração, quer em Angola, quer em Cabo Verde. Ficaram célebres os campos de concentração do Missombo e de São Nicolau, em Angola, e o famigerado Campo do Tarrafal, em Cabo Verde, onde estive preso durante vários anos. Eufemísticamente puseram-lhe depois o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, alegadamente com o objectivo de “recuperar pelo trabalho” aqueles que se haviam rebelado contra o regime colonial.

9. Infelizmente, alguns dos meus companheiros do Tarrafal só perceberam a “vertente colonial” do regime de Salazar, não tendo entendido bem a sua “vertente fascista”. Por isso, ajudaram a pôr em prática tal vertente injusta, repressiva e desumana na Angola independente. Essa é uma nódoa que caiu sobre a sua vestimenta de combatentes anti-coloniais…

10. Para além da educação cívica e política que tive na infância e adolescência, a minha experiência num campo de concentração como o Tarrafal tornou-me muito sensível à problemática dos direitos humanos, e muito em especial ao direito a todo o tipo de liberdades. Faço, pois, questão de me manter fiel a essa memória.

11. O Campo do Tarrafal não foi verdadeiramente um campo de extermínio, como foram os campos de Auschwitz-Birkenau. Os campos de extermínio são a expressão mais acabada da demência política humana. Foi lá que se assassinaram milhões de seres humanos. Diz-se mesmo que só em Auschwitz pereceram para cima de 1 milhão de homens e mulheres, velhos e crianças, das mais diversas condições e das mais díspares origens. Os nazistas não tinham limites, muito menos consciência. Corporizaram a subida ao poder do pior que a humanidade pode ter produzido.

12. Em verdadeiro delírio vingativo, Adolf Hitler, secundado pelo chefe das SS, Heinrich Himmler, ou por Rudolf Hoess, e por outros iguais, mandou para os campos de morte judeus, ciganos, prisioneiros de guerra soviéticos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, testemunhas de Jeová. Fez ainda questão de decapitar o essencial da intelectualidade polaca. Os que escaparam às câmaras de gás (com o famoso Ziklon B) e aos fornos crematórios, foram transformados em escravos, trabalhando nas construções do campo, ou então em fábricas que alimentaram a máquina de guerra nazi. Cinicamente, o portão principal de entrada de Auschwitz ostentava a seguinte frase “Arbeit macht frei”, ou seja “O trabalho liberta”.

13. Cresci muito marcado por tudo quanto aconteceu durante a instalação do nazismo e, sobretudo, pelo seu resultado imediato: a Segunda Guerra Mundial.

14. Durante a minha adolescência e no processo de formação da minha consciência cívica e política, houve factos que dominaram a literatura que fui lendo e os filmes que fui vendo: a Segunda Grande Guerra, a Resistência Francesa, a luta pela emancipação dos negros norte-americanos, a emergência do movimento de libertação dos povos africanos, as guerras que se travaram na Ásia pelas independências, e outras profundas transformações sociais. Acompanhei também, e com muita atenção, os movimentos sociais na América Latina. Foi todo esse cenário de mudança que povoou o meu imaginário de jovem e me tornou hoje um homem atento e participativo.

15. Não podia, pois, ficar indiferente ao acontecimento singular que são os 65 anos da tomada de Auschwitz–Birkenau, talvez o maior símbolo da paranóia nazi. Auschwitz–Birkenau é uma chaga que ficará para sempre na memória dos homens. É a prova de que há homens e mulheres que, por vezes, perdem quase toda a racionalidade, tornando-se, assim, tão ferozes como os animais que vagueiam na selva.

16. São já poucos os sobreviventes do Holocausto. São cada vez em um menor número os companheiros com quem vivi os anos de reclusão no Campo do Tarrafal. São também cada vez menos aqueles que restaram do Campo de São Nicolau (depois tornado Campo de Bentiaba) e do Campo de Extermínio da Kalunda, no Moxico. Estes, em especial, também foram vítimas de um quase Holocausto. Só que, desta vez, com a participação de carrascos angolanos… Afinal, a cegueira política dos homens não escolhe raças nem continentes e, muito menos, países…