quarta-feira, 30 de junho de 2010

A VIRTUDE DA VERDADE

1. Na semana que findou, a economia angolana esteve no centro das atenções, sobretudo porque tivemos entre nós “um hóspede de luxo”, o Professor Paul Krugman, um dos mais renomados economistas da actualidade, que foi laureado com o Prémio Nobel da Economia no ano de 2008. O Professor Paul Krugman visitou Luanda por breves instantes, para participar numa Conferência denominada “Estratégia e Competitividade”, organizada pelo FACIDE, o Fórum Angolano para a Competitividade, Inovação e Desenvolvimento.

2. Por razões da minha própria agenda, não pude estar presente nessa Conferência que decorreu no Centro de Convenções de Talatona. Porém, satisfez-me o facto de a Universidade Católica de Angola, e particularmente a Faculdade de Economia e Gestão, ter tido entre os conferencistas dois dos seus mais prestigiados docentes: os Professores Alves da Rocha e Carlos Rosado de Carvalho. Pelo que eu conheço dos dois, presumo que o seu desempenho terá sido de grande qualidade, ao nível das aulas que ministram na nossa Faculdade.

3. O Professor Alves da Rocha dissertou sobre “A posição estratégica de Angola em África”. Soube que ele apresentou uma perspectiva sobre o desempenho da nossa economia, comparativamente com as economias dos restantes países africanos. Alves da Rocha previu que, caso se mantenham favoráveis certos dos pressupostos económicos actuais, a economia angolana, hoje colocada em 7º lugar, assumir-se-á, em 2014, como a 5º economia africana. Ela será somente superada pelas economias da África do Sul, Nigéria, Egipto e Argélia, ultrapassando, assim, as economias da Líbia e de Marrocos. E Alves da Rocha deu o seguinte recado: É necessário implementar uma estratégia empresarial correcta e sólida; devemos abrir mais a economia ao estrangeiro, se bem que de um modo ponderado; urge aumentar a competitividade das empresas nacionais, assim como em outros domínios da vida nacional.

4. É bom que os nossos decisores políticos entendam estes avisos, sob pena de se gorarem as expectativas criadas. Espero, também, que não vejam novamente o economista e académico angolano como um herege, tal como sucedeu ainda de fresco, o que não é bom para qualquer país, e, sobretudo, para o nosso, pois somos muito carentes de massa crítica. Torpedear-se a liberdade de pensamento, penalizar-se quem pensa diferente, vale, seguramente, na Coreia do Norte, em Cuba, ou no Irão, não num país que diz pretender instituir a democracia como uma regra. Os intelectuais e os verdadeiros académicos não são pombos correio, muito menos devem servir de bocas de aluguer…

5. O Professor Carlos Rosado de Carvalho dissertou sobre “O ABC da Política Económica Angolana: As Lições da Crise”. Julgo que ele terá sido suficientemente explícito na abordagem desta matéria. Recordo que no auge da recente crise económica e financeira internacional, eu, os Professores Rosado de Carvalho, Alves da Rocha e Vicente Pinto de Andrade (por coincidência, todos docentes da UCAN), figurámos entre as poucas vozes de economistas angolanos que não esperaram que o Presidente da República, Eduardo dos Santos, anunciasse publicamente o impacto que a crise internacional estava produzir sobre Angola. Tomámos posição no devido tempo e com a necessária clareza. Não funcionámos, pois, como caixa de ressonância de ninguém como, infelizmente, alguns economistas se comportaram.

6. O Professor Paul Krugman catalogou como animadoras para Angola as perspectivas actuais de estabilização do mercado petrolífero internacional. Para ele, a retoma de algumas das principais economias e o consequente aumento dos consumos de crude, associados a preços de mercado mais favoráveis, gerarão um aumento das nossas receitas de exportação. Destacou ainda, em especial, as implicações positivas das nossas relações comerciais com países que têm conseguido escapar da crise, como a China, Brasil e Índia, contrastando com o mau momento que vivem, por exemplo, as principais economias europeias, a braços com os reflexos da crise internacional.

7. Mesmo assim, Paul Krugman não deixou de caracterizar o nosso país como “um país pobre”, dizendo ainda que o essencial do dinheiro arrecadado com a venda do petróleo deve ser aplicado na educação e na saúde, afinal, os verdadeiros garantes da estabilidade social e por onde se deve travar o combate à pobreza. Ficará célebre a sua asserção segundo a qual “não se desenvolve um país por meio da magia”. Faz-se por meio de políticas económicas e sociais correctas. Paul Krugman não caiu na tentação em que geralmente caiem alguns estrangeiros, quando, para adoçar o ego de alguns, nos caracterizam como um país rico. Se somos ricos, será apenas em potencial.

8. Na realidade, o nosso país é pobre, demasiado caro, muito desigual, tremendamente assimétrico, e bastante penalizador para os seus segmentos mais desfavorecidos. Além disso, o nosso crescimento económico é irregular e está muito dependente de um único produto, o petróleo. Ficando tudo ainda mais agravado pelo facto de o preço do petróleo não depender da nossa vontade. O preço do petróleo que nós vendemos é determinado no mercado internacional, onde estamos inseridos, mas de que não somos um “player” de grande relevo.

9. Somos, também, contraditórios quando nos referimos ao peso do petróleo na formação do nosso Produto Interno Bruto. Por exemplo, em finais do mês de Novembro de 2009, o então Ministro da Economia, Manuel Nunes Júnior, afirmou, no Parlamento, que o sector não petrolífero da nossa economia contribuía já com apreciáveis 58% para a formação do PIB, pelo que restariam tão-somente 42% para o sector petrolífero. Na voz do Ministro, isso significava uma clara inversão da importância da posição desses sectores. Estávamos perante uma mudança estrutural importantíssima para a nossa economia, com consequências positivas na criação de muito mais empregos e uma significativa melhoria no bem-estar das populações.

10. Na sua intervenção no Parlamento, o Ministro Manuel Nunes Júnior ilustrou resumidamente o percurso do PIB a partir do ano de 2006. Nesse ano, o crescimento do sector não petrolífero teria sido superior ao do sector petrolífero. Em 2007, o crescimento do sector petrolífero fora de 20,4%, e o do sector não petrolífero de 25,7%. Em 2008, o crescimento do sector petrolífero atingira 12,3%, contra os 15% do sector não petrolífero. Em 2009, o sector petrolífero teve um crescimento negativo de 3,6%, e o sector não petrolífero um crescimento positivo de 5,2%. Para 2010, o Ministro previu um crescimento de 3,4% para o sector petrolífero e um crescimento de 10,5% para o sector não petrolífero.

11. Há, pois, aqui, uma clara inconstância nas taxas de crescimento do PIB. E é bem perceptível o facto de o sector não petrolífero da nossa economia andar muito a reboque da evolução do sector petrolífero que o arrasta, ou, pelo menos, que o acelera ou desacelera.

12. Se é indubitável a relativa aleatoriedade das taxas de crescimento da nossa economia, fruto das circunstâncias e incidências do petróleo, tornou-se para mim mais inquietante a falta de sintonia entre os dados avançados em finais de 2009 pelo então Ministro da Economia, e os dados agora avançados pelo Governador do Banco Central, Abraão Gourgel. No encerramento do “V Encontro de Juristas Bancários de Angola”, Abraão Gourgel disse que o sector petrolífero contribui com 55% para a formação do nosso PIB. O Governador do BNA falou ainda sobre a importância de alguns sectores económicos para a economia e, sobretudo, para a geração de emprego, tendo destacado o papel da agricultura, agro-indústria e construção civil.

13. Estou de acordo com os postulados do Governador do BNA sobre a importância a dar aos sectores não petrolíferos, mas fiquei muito preocupado com a falta de concordância entre os números que foram avançados publicamente por aquelas duas individualidades, no curto espaço de 6 meses. Por exemplo, como foi possível, em apenas 6 meses, o sector petrolífero da nossa economia ter passado de uns estimulantes 42% na formação do PIB (como referiu o então Ministro da Economia), para os novamente preocupantes 55% exibidos pelo Governador do BNA? Alguma coisa não está a bater certo… Será que a estrutura do PIB pode variar tão rapidamente? Tendo havido uma evolução muito positiva no sector não petrolífero da nossa economia, como afirmou o Ministro, ainda assim o sector petrolífero recuperou o seu vigor e o seu protagonismo? Será também que a dinâmica dos números varia em função do auditório a quem nos dirigimos?

14. Para os parlamentares, talvez com o intuito de facilitar a aprovação do Orçamento, o Ministro da Economia disse que o peso específico do sector petrolífero estava a diminuir. Para os juristas bancários (para quem os números poderão querer dizer muito pouco), o Governador do BNA avançou uma percentagem que coloca a nossa e economia, em termos estruturais, praticamente no mesmo patamar em que estávamos antes. Ou será que já estamos diante do velho ditado, que diz: “Mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo…”?

quarta-feira, 23 de junho de 2010

DIAS SANGRENTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

1. O dia 22 de Janeiro de 1905 calhou num Domingo. Nesse dia, um grupo de manifestantes (estima-se que atingiria os 200 mil, na sua maioria operários), chefiados por um padre ortodoxo, dirigiu-se para o Palácio de Inverno do Czar da Rússia, Nicolau II, em São Petersburgo, cidade capital do Império. O objectivo da marcha era a entrega de uma petição dirigida ao Czar da Rússia e subscrita por 135 mil pessoas. No documento os subscritores reivindicavam uma maior representatividade para o povo, também a reforma agrária, o fim da censura, mais liberdade religiosa, etc.

2. Com tais reivindicações, eles pretendiam limitar o absolutismo do Imperador, ampliando assim o espaço das liberdades democráticas. Porém, foram violentamente reprimidos pela guarda imperial, com disparos de armas de fogo. No terreno, ficaram várias centenas de mortos. Há quem mesmo refira que foram na ordem dos milhares. A repressão do dia 22 de Janeiro em São Petersburgo transitou para a história com a designação “O Domingo Sangrento de 1905”. Para alguns ela é tida até por “A Revolução Russa de 1905”. A opinião unânime é de que “O Domingo Sangrento de 1905” constituiu o rastilho para a “Revolução de Outubro de 1917”.

3. Esse histórico “Domingo Sangrento de 1905” teve consequências enormes, algumas das quais resumimos aqui: i) Para tentar aplacar a ira da população, o Czar Nicolau II criou a Duma, o Parlamento Russo; ii) Fez aumentar a aceitação das ideias socialistas dos alemães Karl Marx e Friedrich Engels no seio dos movimentos sociais russos; iii) Impulsionou o surgimento dos “sovietes de trabalhadores”, os conselhos de operários que passaram a coordenar o movimento operário nas fábricas. Foram precisamente os “sovietes de trabalhadores” quem jogou um papel crucial na “Revolução Russa de 1917” dirigida por Lenine.

4. A entrada da Rússia na I Guerra Mundial, contra a Alemanha e o Império Austro-Húngaro, depois fez o resto: i) Aumentou o descontentamento da população; ii) Agravou ainda mais a crise económica e social; iii) Provocou a perda de milhares de soldados no campo de batalha, mal armados e mal alimentados; iv) Colocou polícias e soldados do lado dos populares que se sublevaram.

5. O dia 30 de Janeiro de 1972 também foi um Domingo. Nesse dia, na Irlanda do Norte, mais concretamente em Londonderry, uma marcha de irlandeses católicos foi selvaticamente reprimida por pára-quedistas ingleses, com um saldo de mais de uma dezena de mortos.

6. Eis o histórico que permite enquadrar “O Domingo Sangrento da Irlanda do Norte”: i) Em 1923, a Irlanda fora dividida em duas partes: a parte norte do território, maioritariamente protestante, ficou integrada no Reino Unido, enquanto que a parcela sul, católica, se tornou independente, sob a designação de República da Irlanda; ii) Embora maioritariamente protestante, a Irlanda do Norte possui também na sua população gente que professa a religião católica. É precisamente essa parte da população que reivindica a sua desvinculação do Reino Unido e a união à República da Irlanda.

7. A repressão de Londonderry, do dia 30 de Janeiro de 1972, reforçou o papel do clandestino IRA, o Exército Republicano Irlandês. Com isso, o IRA recebeu um enorme afluxo de voluntários, aumentando, assim, a sua capacidade para afrontar as autoridades inglesas, por meio de actos de sabotagem e da colocação de bombas.

8. Na altura do incidente de Londonderry, foi instaurado um inquérito que ilibou os soldados e as autoridades britânicas. Tal inquérito concluiu mesmo que a iniciativa dos tiros partira dos manifestantes. Logo, as culpas da tragédia não deviam ser assacadas nem aos soldados, nem às autoridades britânicas.

9. Porém, em 1998, o então Primeiro-Ministro, Tony Blair, mandou reabrir o processo e instruir um novo inquérito. O inquérito foi agora concluído (12 anos depois), tendo chegado à conclusão que, afinal, os manifestantes estavam desarmados, e que o fogo partira dos militares, a quem imputa todas as responsabilidades.

10. Foi a recente divulgação deste resultado que inspirou este meu texto, pelo enorme significado que ele possui, sobretudo se visto à luz da nossa própria realidade. Por vezes, nós esquecemo-nos que temos também uma história recente com marcas indeléveis.

11. No dia 15 de Junho, o actual Primeiro-Ministro, David Cameron, apresentou no Parlamento britânico o resultado desse inquérito que durou 12 anos a produzir resultados definitivos. De seguida, David Cameron pediu desculpas públicas pelo acto praticado pelos militares, um pedido de desculpas públicas que o enobrece e, de certo modo, suaviza a ira dos católicos irlandeses, que registam o “Domingo Sangrento de 1972” como um momento negro na sua história. As desculpas pedidas por David Cameron de modo algum restituirão as vidas perdidas, mas elas têm o condão de repor a verdade histórica, abrindo o caminho para a concessão de eventuais indemnizações pecuniárias, ou outras.

12. O dia 22 de Janeiro de 1993 não coincidiu com um Domingo. O dia 22 de Janeiro de 1993 foi uma Sexta-Feira. Nesse dia, Luanda viveu uma acção repressiva sem precedentes, saldando-se por muitas vítimas entre homens, mulheres e crianças originários das províncias angolanas do Uíge e Zaire. A repressão prosseguiu nos dias 23 e 24. Fala-se mesmo em centenas de mortos, mas, é muito difícil confirmar a veracidade dessa estimativa. O estopim da acção foi a informação posta a circular, no dia 21, por um órgão oficial de comunicação social, segundo o qual estava em preparação uma tentativa de assassinato do Presidente Eduardo dos Santos. A comunidade bakongo de Angola lembra o dia 22 de Janeiro de 1993 como “A Sexta-Feira Sangrenta”.

13. O massacre da “Sexta-Feira Sangrenta” não foi objecto de um rigoroso inquérito, creio até que ele caiu no esquecimento. Assim, não há, pois, como imputar culpas directas, muito menos a quem atribuir a responsabilidade política do acto. É por isso que os autores materiais e morais da “Sexta-Feira Sangrenta” se passeiam livremente pelas nossas ruas, como se nada de mal tivessem feito… Eles dormem, descansados, o sono que é devido apenas aos justos…

14. Felizmente que “A Sexta-Feira Sangrenta” de Luanda não desencadeou revoluções nem estimulou separatismos – apenas lançou sinais de intolerância e de desconfiança étnica. Mas, a sua impunidade inquieta… Até que um dia surja, entre nós, um Tony Blair que ordene um rigoroso inquérito. Ou, então, que sobreviva um David Cameron, com coragem de assumir publicamente que houve, realmente, quem tenha violado os direitos mais elementares da pessoa humana – e por motivações meramente étnicas. Isso torna mais grave esse crime – ele já por si hediondo.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A QUALIDADE DE VIDA

1. Por norma quando, no estrangeiro, é publicado um relatório com uma classificação negativa para o nosso país, surgem, de imediato, nos nossos órgãos de informação pública editoriais a desvalorizar os seus resultados. Há quem chegue mesmo ao ponto de tecer considerações sobre “as reais intenções” dos pesquisadores, a quem acusam de agir de má-fé, talvez por despeito, talvez por um escondido espírito de vingança…

2. Saiu agora um novo relatório internacional, desta vez da responsabilidade da Mercer, uma empresa que é líder global em serviços de consultoria, outsourcing e investimentos. Está instalada em cerca de 40 países e emprega acima de 18.000 trabalhadores. Nada se pode, pois, dizer que produziu um trabalho feito por curiosos, ou por mal-intencionados. Eles são profissionais competentes e experientes.

3. O objectivo do estudo é o de fornecer informações aos governos e às empresas multinacionais envolvidos na transferência de colaboradores para projectos internacionais, garantido, assim, um processo de remuneração mais justo. Para tal, é fundamental inquirir sobre um conjunto de indicadores, distribuídos por várias áreas que vão desde a política, à economia, ambiente, qualidade da educação, segurança pessoal e saúde, transporte e outros serviços públicos.

4. É evidente que as cidades com pior qualidade de vida verão agravados os custos desses expatriados, com naturais reflexos negativos sobre a factura global dos projectos. Não há, pois, aqui qualquer laivo de má-fé, provocação ou vontade persecutória. É um trabalho de pesquisa que visa ajudar os governos e as empresas a tomarem decisões justas e mais equilibradas.

5. Mais uma vez, Angola ficou “mal na fotografia”, como se costuma dizer. De entre as 221 cidades seleccionadas de todo o mundo, reservou-se para Luanda o lugar 198. Luanda foi considerada uma das piores cidades para se viver, de acordo com os 39 critérios de avaliação. Esse ranking internacional tem como referência a cidade de Nova York, a quem se atribui o índice com o valor 100.

6. A capital da Áustria, Viena, figurou pela segunda vez consecutiva no lugar cimeiro, e cidades europeias foram as que, globalmente, tiveram melhor cotação.

7. Canadá, Austrália e Nova Zelândia colocaram 9 cidades entre as 25 cidades melhor classificadas. Honolulu, a cidade onde nasceu o actual Presidente norte-americano, Barack Obama, de entre todas as cidades norte-americanas é a que “mais bonita saiu na fotografia”, ocupando o 31º lugar. A última classificada de todas as 221 é Port-au-Prince, a capital do Haiti. Cidades do Médio Oriente e de África situam-se na parte inferior da tabela, como era expectável. Por norma, essas são cidades poluídas, altamente congestionadas, desprovidas de infra-estruturas para acomodar devidamente as pessoas.

8. Como vemos, a qualidade de vida das cidades é uma medida de bem-estar bastante abrangente. Ela considera situações como o estado do saneamento básico, a água que se bebe, o lixo, a fluidez ou o congestionamento do trânsito, os índices de criminalidade, o nível de liberdade individual, o estado do ambiente, etc.

9. Temos, pois, que nos queixar apenas de nós próprios, pelo estado em que se encontra a nossa cidade, uma cidade que há alguns anos os poetas cantaram como sendo linda e de bem-querer. Hoje, Luanda está a perder a graça, estão a destruir-lhe a história. A cada dia que passa, vão-lhe matando a beleza e fazendo perder a sua originalidade.

10. É evidente que a qualidade de vida das cidades engloba dimensões que permitem avaliar o seu custo de vida. Mas não se deve confundir esses dois conceitos.

11. No dia 26 de Fevereiro do corrente ano, durante a reunião do Comité Central do MPLA, o Presidente Eduardo dos Santos fez alusão ao facto de, em Angola, o custo de vida estar a subir constantemente. Orientou mesmo o seu staff para descortinar as razões de tal subida.

12. Que eu saiba, o estudo ainda não foi feito, ou mantém-se inconclusivo. Todavia, todos nós saibamos, mais ou menos, quais são as verdadeiras razões que se escondem por detrás da subida galopante dos nossos preços: é a avidez do lucro fácil, é a falta de concorrência, é o conluio, é o proteccionismo nos negócios que envolvem a nomenklatura e seus aliados externos, é a morosidade nos processos burocráticos, são os elevados custos dos créditos, é a corrupção sob todas as formas, etc.

13. Ainda no mesmo mês de Fevereiro, uma empresa de pesquisa inglesa designou a cidade de Luanda como “uma cidade caríssima”, quer para os nacionais, quer para os estrangeiros. Nesta cidade – disse a empresa pesquisadora – os bens de primeira necessidade, como alimentação, habitação e educação são demasiado caros. Exibem mesmo preços comparáveis aos das cidades mais caras da Europa.

14. Como se pode ver, não há como confundir os dois conceitos, embora a qualidade de vida inclua dimensões já contempladas na análise do custo de vida. Somente por falta de cuidado ou por défice de rigor se podem colocar as duas expressões num mesmo patamar.

15. A expressão “custo de vida” relaciona-se com o valor do conjunto de bens e serviços necessários para a manutenção de uma pessoa numa determinada localidade. São os casos do custo da acomodação, alimentação, vestuário, transporte, entretenimento, bens domésticos duradouros, vestuário, etc. A qualidade de vida vai muito mais longe e tem também natureza qualitativa.

16. A qualidade de vida também tem pontos de contacto com um outro conceito, igualmente interessante: o nível de vida. O nível de vida expressa o grau de conforto. Ele também se traduz em padrões de natureza económica e social, tais como habitação, saúde, o carácter fixo ou não do emprego, o lazer, etc. Porém, não é tão completo como a qualidade de vida.

17. Na realidade, qualidade de vida é o que nós temos muito pouco, pois morremos cedo e vivemos uma vida demasiado complexa. Até mesmo a maioria dos nossos endinheirados, por vezes, não têm qualidade de vida. Eles compram como os ricos, mas morrem como os pobres – Morrem das mesmas doenças que os pobres. Como se fosse por contágio… Ou, então, pela sua ancestralidade…

quinta-feira, 3 de junho de 2010

A DROGA DAS DROGAS

1. Na Jamaica, o tráfico de drogas é tão importante que até já fez eclodir uma verdadeira guerra entre traficantes e autoridades policiais. Segundo se diz, com um trágico saldo de mais de sete dezenas de mortes, maioritariamente, no lado dos traficantes.

2. Bandos de traficantes coligaram-se para resistir às autoridades, ganhando, assim, força para se oporem à ofensiva policial. Por mais estranho que pareça, os sectores mais pobres da população de Kingston, a capital da Jamaica, colocaram-se em defesa dos traficantes, para impedirem que o líder do principal gang fosse detido e, depois, extraditado para os Estados Unidos.

3. Ao contrário da Jamaica, em que o líder do gang é idolatrado por alguns segmentos sociais, nos EUA ele é procurado e reclamado, pelos laços que estabeleceu com os traficantes locais. O comportamento daquela parte da população de Kingston, os deserdados, é que torna importante introduzir o problema nesta sede, neste artigo.

4. Outro facto igualmente interessante aconteceu na Argentina, onde foi detida a colombiana Angie Sanclemente Valência, ex-Rainha Nacional do Café da Colômbia, acusada de chefiar uma rede de mulheres traficantes de cocaína com destino ao México e à Europa. Antiga Miss, Modelo e Actriz, Angie Sanclemente Valência foi presa numa Pousada de Juventude, em Buenos Aires. Quer, então, dizer que a gestão do tráfico de drogas está “democratizada”, pelo menos, do ponto de vista do género. São homens, são também mulheres – não há discriminação.

5. Do Brasil vêm notícias sobre o crescente poder e instabilidade social gerada pelos traficantes. Os bandidos não se coíbem mesmo de colocar em estado de sítio a capital, Rio de Janeiro. Há áreas onde eles imperam sem limites, relegando as autoridades para uma posição defensiva. E mais, não são poucas as vezes que se detectam estreitas ligações entre os traficantes e agentes da polícia, ou mesmo até com políticos. No Brasil, o tráfico de drogas está intimamente ligado a outros crimes, como lavagem de dinheiro, sequestros, corrupção política, prostituição, etc.

6. Com frequência, ouvimos falar de detenções em território brasileiro de cidadãos angolanos envolvidos no tráfico de narcóticos. Há dias, por exemplo, estive no Brasil, e soube que se contam por dezenas os cidadãos angolanos, homens e mulheres, remetidos para as prisões brasileiras, pelo facto de terem sido transformados em “mulas” por traficantes ardilosos.

7. Estamos, ainda assim, perante o chamado “peixe miúdo”. Por isso, a solução encontrada é simples: remetê-los para a cadeia, onde expiarão os seus crimes. Porém, o que a experiência de vida nos mostra é que, geralmente, quando se avista um cardume de “peixe miúdo”, muito próximo dele haverá, seguramente, “peixe grosso”. Porque este último alimenta-se do primeiro…

8. Estatísticas muito recentes apontam o tráfico de drogas como sendo o segundo item do comércio mundial, superado apenas pelo comércio internacional de armamento. O comércio de drogas situa-se mesmo à frente do comércio de petróleo.

9. Se somado ao valor do comércio do tabaco e álcool, que também são droga, o comércio global de drogas supera, inclusive, o comércio de bens alimentares.

10. Os principais mercados produtores de drogas localizam-se em países subdesenvolvidos. Porém, os mercados de consumo são, preferencialmente, países capitalistas mais desenvolvidos, quer na América, quer na Europa. E o segmento social mais afectado pelo consumo de drogas é a juventude: jovens desempregados e jovens oriundos de classes abastadas.

11. Geralmente, as situações de guerra funcionam como um estímulo ao consumo de drogas. Por exemplo, durante a guerra do Vietname, constatou-se que cerca de 40% dos soldados consumia heroína, e cerca de 80% consumia maconha. Diz-se, igualmente que, depois de regressarem às suas famílias, a maioria desses jovens abandonaram o consumo de drogas, retornando ao estado normal. Terá sido, pois, um consumo transitório e o modo que escolheram para ludibriarem o stress e as tensões criadas pelo estado emocional.

12. Eu não tenho dúvidas de que muitos dos jovens que hoje deambulam pelas nossas cidades (feitos loucos) são, na sua grande maioria, vítimas de traumas de guerra e da ingestão de drogas. A droga faz, pois, parte da vida humana, e não escolhe povos nem raças, embora certos tipos de consumos sejam característicos de determinados segmentos sociais. Tudo em função do poder de compra de cada um.

13. Mesmo que um certo número de substâncias psicotrópicas sejam produzidas em países desenvolvidos – como as anfetaminas, LSD e o ecstasy – há, porém, actualmente, países subdesenvolvidos que se transformaram em verdadeiros estados narco-produtores. São os casos do Afeganistão (com o ópio), e do Peru e Colômbia (com a cocaína). Tiveram, pois, que reciclar a sua agricultura a favor da produção de narcóticos, como em outros países na América do Sul, na Ásia do Sudeste, no Médio Oriente.

14. A Guiné-Bissau também é tida como um narco-Estado. De tal modo que os Estados Unidos da América relacionaram o recente levantamento militar em Bissau com a prevalência dos traficantes na instituição militar. Foram mesmo ao ponto de identificar um dos actuais líderes da rebelião militar, que culminou com a prisão do Primeiro-Ministro e do Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, dizendo que se tratou de uma acção inspirada por narcotraficantes.

15. Essas questões aconteceram a milhares de quilómetros de distância do nosso país. Porém, deverão servir-nos de referência. De modo algum será sensato, por exemplo, pensarmos que estamos imunes contra situações idênticas.

16. Presentemente, nada indicia ainda que factos como esses nos venham também bater à porta. Todavia, a apetência por dinheiro fácil está a enraizar-se tanto entre nós que poderá mesmo vir a transformar-se em cultura.

17. Não estranharei, por isso se, um dia destes, ouvir dizer que redes internacionais de tráfico de drogas já se instalaram no nosso território, encontrando acolhimento e inúmeras facilidades. Logo, com capacidade para iludir e ludibriar as nossas autoridades.