quinta-feira, 28 de outubro de 2010

É O “DÉBRUILLEZ-VOUS!”

1. Saltou à vista de quem escutou o discurso do Presidente José Eduardo dos Santos sobre “O Estado da Nação” o facto de ele não ter dedicado uma única linha à corrupção. Para certos observadores, o descaso pode ter significado o reconhecimento de que JES já não possui “fórmulas mágicas” para uma tão grande empreitada. Para outros, José Eduardo dos Santos poderá mesmo ter já chegado à conclusão de que, fazendo a corrupção corpo com o regime seria, pois, contraditório tentar combater um fenómeno que ali se alimenta.

2. Recordo que foi o próprio Presidente José Eduardo dos Santos quem, há anos, declarou que neste país quase não haveria quem vivesse somente de rendimentos lícitos. (Se não estou em erro, JES falou, especificamente, dos salários).

3. Para a maioria da nossa população, essa afirmação não foi propriamente vista como uma crítica à corrupção mas, sim, como um muito subtil consentimento, um claro “Débruillez-vous!”, ou seja, “Desenrasquem-se!”. Então, depois, foi simples, muitos passaram a agir em conformidade. Foram pisoteando todas as regras, entrando num processo declarado de apropriação ilícita de riqueza, alguns usando a capa de empreendedores.

4. Como diz o velho ditado: “Quem não tem cão, caça com gato”. Por isso, é vê-los hoje a “arranharem” tudo quanto é património público, despudoradamente a delapidarem o erário público, num processo de acumulação do capital que deixaria boquiabertos até os que, há séculos, desencadearam aquilo que ficou consagrado como a acumulação primitiva. Mas, voltemos ao essencial.

5. Depois de, no seu discurso à Nação, discorrer sobre um vasto leque de questões, JES elegeu como preocupações estratégicas para os próximos anos, as seguintes:

a) A preservação da unidade e coesão nacional, com a consolidação da democracia e das instituições;
b) A garantia dos pressupostos básicos necessários ao desenvolvimento, através da estabilidade financeira e da transformação e diversificação da estrutura económica;
c) A melhoria da qualidade de vida e a consequente melhoria dos índices de desenvolvimento humano dos angolanos;
d) O estímulo ao sector privado, em especial ao empresariado angolano;
e) O reforço da inserção competitiva de Angola no contexto internacional.

6. Eu penso que de modo algum será factível a consolidação da democracia e a solidez das instituições se a corrupção continuar a grassar e a corromper a nossa sociedade, como tem sucedido até agora.

7. Mesmo que a corrupção seja reconhecidamente um fenómeno universal, é um facto indesmentível que ela é mais acentuada nas sociedades onde a democracia é débil, ou onde ela é apenas um desígnio teórico. As sociedades mais democráticas procuram aprimorar os instrumentos de seu combate à corrupção. Daí que, frequentemente, surjam a público notícias de acções judiciais contra infractores altamente mediáticos.

8. Nas democracias modernas, o combate à corrupção funciona como um mecanismo de defesa do regime democrático. Entre nós, fica-se com a impressão que a corrupção é essencial ao regime, dando-lhe alma e energia.

9. Ilude-se, pois, quem pensa ser possível desenvolver um país de forma harmoniosa desprotegendo-o contra a corrupção. A corrupção desestabiliza e mina a confiança nas instituições, onera os custos dos bens e dos serviços, promove uma afectação ineficiente dos recursos disponíveis. A corrupção deforma a própria estrutura económica do Estado.

10. Se institucionalizada, a corrupção gera efeitos nefastos sobre o desenvolvimento humano: desacelera o crescimento económico, acentua os níveis de pobreza, dificulta o acesso aos bens e aos serviços básicos, fragiliza a estrutura social, promove o aumento das desigualdades.

11. Embora o Presidente da República tenha elegido, no seu discurso, como questão estratégica o incentivo ao empresariado nacional, eu creio que, nas circunstâncias actuais, tal estímulo permanecerá ainda discricionário, ou seja, continuará condicionado à militância partidária. Isso chama-se corrupção política, e é uma das formas mais gravosas e nefastas de corrupção.

12. Se queremos garantir competitividade internacional, como assinalou JES, temos que estimular os melhores, apoiar os mais competentes, acarinhar os mais dedicados, glorificar os mais criativos. Só assim poderemos produzir com qualidade e oferecer bons preços. A competitividade internacional que nos interessa não é a da venda de matérias-primas, é a que resulta da venda ao exterior de bens e serviços com valor acrescentado nacional. E isso consegue-se com competência – não é com militância partidária.

13. Eduardo dos Santos não está em condições de reconhecer publicamente que organizou um puzzle tal que, mexendo-se numa peça essencial, ruirá toda a estrutura. É por isso que os que o adulam se agarram a ele como náufragos em desespero. É a sua bóia de salvação.

14. O último relatório da Transparência Internacional veio demonstrar que JES se equivocou quando, no seu discurso sobre “O Estado da Nação”, fez descaso do fenómeno corrupção. Angola mantém-se entre os dez países pior colocados no que diz respeito à percepção sobre a corrupção. Entre 178 países avaliados, Angola situou-se na posição 168, sendo apenas ultrapassado por países como a Somália, o Afeganistão ou o Myanmar.

15. Esta é uma realidade que não pode ser posta em causa, muito menos a credibilidade da agência internacional que realiza anualmente o estudo. Não vale a pena tapar o sol com a peneira: o nosso país é muito mal visto internacionalmente.

16. Não é com discursos altamente tendenciosos e enviesados que melhoraremos a nossa imagem pública. Há, pois, que ter coragem de assumir que o barco está a navegar em águas alterosas. Basta olhar para “O Estado do Mar…”

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