quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

UM POVO RICO DE HISTÓRIA

1. Quando alguém fala da Tunísia, vem-me de imediato à memória Cartago, a cidade africana que, na antiguidade, rivalizou com Roma na disputa pela supremacia no Mar Mediterrâneo.

2. O estudo da história universal foi parte importante do currículo académico da minha geração. Sei que foi, também, das gerações anteriores à minha. Porém, pelo que me apercebo, e ao nível do ensino secundário actual, a história universal já tem muito menos importância. É lhe dado pouco espaço e menos relevo. É pena que seja assim, pois o conhecimento da história – até mesmo a história dos outros países – pode servir-nos de precioso auxiliar para entendermos melhor o que vai sucedendo nos nossos dias.

3. Um dos temas da história universal que sempre me entusiasmou foi a disputa entre cartagineses e romanos, pelo domínio comercial do Mar Mediterrâneo – ainda Jesus Cristo não tinha nascido.

4. Para além de estabelecer a ligação entre o Oriente e o Ocidente, a economia do mundo ocidental tinha o seu ponto fulcral no Mar Mediterrâneo. Diz-se que, na altura, a Sicília (tomada pelos cartagineses) era o grande “celeiro”. Por isso, os grandes actores dessa época eram Roma e Cartago (uma cidade fundada no Norte de África pelos fenícios).

5. Roma e Cartago guerrearam-se três vezes, nas chamadas Guerras Púnicas, com a Terceira Guerra Púnica a determinar a destruição de Cartago às mãos dos romanos comandados por Cipião Emiliano.

6. Os romanos temiam a concorrência de Cartago na luta pelo domínio do Mediterrâneo Ocidental. Disputavam-lhe a hegemonia económica, política e militar naquela que era, então, a área mais importante do mundo.

7. Amílcar Barca e o filho, Aníbal Barca, generais cartagineses, fizeram história… Amílcar, o pai, conquistou o sul da Península Ibérica, graças à forte esquadra marítima que possuía, tida como a mais potente da época. Partindo da Península Ibérica com o seu exército montado em elefantes, Aníbal, filho de Amílcar, caminhou pelo sul da Europa até à Península Italiana sem, contudo, tomar de assalto a cidade de Roma. Foi isso que terá ditado depois o seu fracasso.

8. Aprendi, então, que o general romano, Cipião, dito “O Africano”, atacou Cartago e derrotou Aníbal Barca na famosa batalha de Zama. Com a derrota dos Barca e a destruição de Cartago por Cipião Emiliano, Roma ficou com o domínio do Mediterrâneo Ocidental.

9. O país africano que alberga as ruínas de Cartago é, pois, precisamente, a Tunísia, país para o qual convergem os olhos e a atenção da comunidade internacional, depois do derrube do ditador Ben Ali, em resultado de uma revolta popular.

10. O que se passou em Cartago há mais de dois mil anos, nada tem a ver com o momento presente. Porém, permite-nos compreender melhor – pelo menos em parte – o espírito dos tunisinos, que, afinal, são seus descendentes, herdeiros da sua história.

11. A Tunísia é um pequeno país não muito povoado, já porque cerca de 40% do seu território está ocupado pelo deserto do Sahaara. Dos pouco mais que 10 milhões de habitantes que possui, a esmagadora maioria são árabes. Tem ainda uma minoria de berberes, que são povos nómadas. Os tunisinos são maioritariamente muçulmanos do ramo sunita.

12. Os indicadores socioeconómicos da Tunísia são razoáveis, se comparados com os da grande maioria dos países africanos, e até mesmo com os restantes países do Magrebe. Eles aproximam-se do padrão europeu. É considerado um país de desenvolvimento humano elevado e tem um povo culturalmente evoluído.

13. Se olharmos com atenção para as imagens que as televisões vão exibindo dos locais onde têm decorrido as manifestação populares, ficamos com a impressão de que se trata de uma sociedade sem grandes evidências de miséria, com os espaços bem organizados e com boas infra-estruturas, o que não é a imagem dos países africanos subsaharianos, nem mesmo dos restantes países magrebinos.

14. Passei, pois, a interrogar-me sobre o porquê de ter havido uma revolta tão radical, ao ponto de pôr fim ao regime instalado por Ben Ali. A resposta tem sido dada pelos noticiários de todo o mundo: elevados níveis de desemprego, carestia do custo de vida e falta de liberdade política.

15. As duas primeiras razões são do foro económico e só com o crescimento da economia e o aumento da competitividade é possível resolver. Uma economia que não cresce, ou que cresce pouco, não é capaz de criar empregos suficientes para absorver a massa de jovens que, por norma, busca ocupação. Podemos ainda dizer que a opção por políticas económicas incorrectas pode estar também na origem desse enorme desemprego e do elevado custo de vida. Tanto podem ser, pois, razões conjunturais como até razões estruturais.

16. A falta de liberdade que animou a partir de certa altura a contestação popular é, sim, matéria essencialmente política. Vivendo, aparentemente, num sistema multipartidário, o regime político vigente na Tunísia era, na realidade, uma ditadura. E, por definição, as ditaduras são os piores inimigos da liberdade. O povo tunisino passou, então, a associar os três requisitos fundamentais para tornar possível uma revolução: a luta pelo pão, pelo trabalho e pela liberdade.

17. Quando Ben Ali se instalou no poder, prometeu restituir ao povo a liberdade que o regime do anterior presidente, Habib Bourguiba, havia sequestrado. Mas não cumpriu a promessa. Antes pelo contrário, instalou uma ditadura que se prolongou por longos e dolorosos 23 anos. Transformou ainda o seu poder no principal instrumento para o seu enriquecimento pessoal, da sua família e dos seus mais próximos colaboradores. Estão agora em vias de perder tudo, ou quase tudo.

18. Alguns dos mais próximos de Ben Ali já começaram a sofrer as consequências da mudança: estão a ser alojados nas cadeias, para expiarem pelos crimes cometidos e pela ganância exibida ao longo do tempo da ditadura. O Partido que ele usou para instalar a ditadura e enganar o seu povo está agora em vias de ser dissolvido.

19. Há dias um amigo meu perguntou-me sobre o porquê de a revolução na Tunísia ter sido tão rápida e tão profunda. Eu ainda não tenho uma resposta definitiva para esta questão bastante complexa. Porém, penso que tudo aconteceu assim, de uma forma tão célere e tão radical, porque a classe média tunisina atingiu o limite da exaustão. E estoirou. Depauperada, a classe média tunisina não tinha como se reconverter. Um quadro tem enorme dificuldade em se reconverter, se perde, por exemplo, o emprego.

20. Os mais pobres têm mais facilidade em se reconverter. Por norma, instalam-se no mercado informal ou procuram ocupações que exigem menos qualificações. E vão sobrevivendo, mesmo que amargamente.

21. A classe média tem menos escapatórias. Por isso, começa a questionar o próprio regime, não apenas as pessoas. Viu-se, pois, que foram os estudantes e os jovens desempregados que vieram à rua exigir liberdade e o fim da ditadura. Temporariamente, pelo menos, venceu a revolução.

22. Mas o futuro ainda é muito incerto, pois a Tunísia pertence ao mundo islâmico, onde há outros ingredientes que podem alterar o actual perfil e o destino da revolução.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

CORNELIUS DUPREE JR. OS ERROS JUDICIAIS

1. Sempre que tomo conhecimento de uma notícia sobre um erro judiciário capaz de ter custado a via a alguém, eu pronuncio-me. Faço-o com o objectivo de ajudar a que possamos reflectir um pouco mais, não só sobre os erros judiciários mas, sobretudo, sobre as suas eventuais e até trágicas consequências. Desta vez, impele-me o facto de, novamente nos Estados Unidos, alguém ter passado 30 anos na cadeia pagando, duramente, por um crime que não cometeu.

2. Em 1980, o negro Cornelius Dupree Jr., hoje com 51 anos de idade, foi formalmente acusado e condenado a 75 anos de prisão por roubo, violação e homicídio de uma jovem mulher branca, então com 26 anos de idade. Tudo se passou no condado de Dallas, no Estado do Texas.

3. Pelo mesmo crime sobre a mesma vítima foi também condenado Massingill Anthony, um indivíduo igualmente negro. Porém, os testes de ADN recentemente realizados provaram que, quer Cornelius Dupree Jr., quer Massingill Anthony não foram os autores dos crimes de que foram acusados e por que foram sentenciados. Cornelius Dupree Jr. saiu agora em liberdade mas, Massingill Anthony permanece na cadeia, pois está a cumprir uma pena de prisão perpétua, por um outro crime de que diz também ser inocente.

4. Mas, antes de prosseguirmos, vale a pena explicar o porquê de eu ter identificado os condenados e a vítima pela raça. É que, mesmo que os erros judiciários ocorram em todo o mundo e em todas as épocas, nos Estados Unidos, porém, tais erros judiciários, com consequências trágicas, na maior parte das vezes, envolvem pessoas com tais características. Isso deve-se, seguramente, ao passado segregacionista daquela sociedade, um passado que deixou marcas profundas e produziu assinaláveis traumas.

5. A prova de que erros judiciários similares não ocorrem somente no sistema judiciário norte-americano é que, em 2009, foi dado igualmente por inocente, após ter passado 27 anos na cadeia, o cidadão britânico Sean Hodgson, acusado de violação e morte, em 1979, de uma jovem de 22 anos. Em 1982, fora condenado a prisão perpétua.

6. Quando os dois crimes aconteceram (separados por um ano), ainda não se faziam os testes de ADN. Produziam-se, sim, testes ao sangue que quase que se limitavam à verificação do grupo sanguíneo do suspeito. Este é um resultado tremendamente ineficaz, pois contam-se por milhões em cada país os indivíduos pertencentes ao mesmo grupo sanguíneo.

7. Existem agora outras técnicas forenses mais avançadas, entre as quais o exame ao ADN, que garantem uma maior eficácia e certeza. Isso levanta o problema da necessidade crescente de se recolherem e preservarem todos os elementos de prova disseminados no local dos crimes.

8. No passado, algumas das sentenças mais questionadas tiveram como fundamento condenatório resultados de exames ao grupo sanguíneo e as confissões dos próprios acusados. Porém, uma avaliação feita pela organização de advogados “Innocence Project”, que aposta na defesa desses casos polémicos, mostrou que cerca de 25% das pessoas que foram ilibadas com base nos resultados das modernas técnicas forenses, de início, tinham admitido ser culpadas. Provou, também, que 75% das condenações provadas pelos testes de ADN foram indevidamente reconhecidas por uma testemunha ocular. Quer isso dizer que a admissão da culpa, ou o simples testemunho não podem ser considerados provas bastantes para uma condenação. Necessita-se, sim, de fundamentos técnicos mais seguros, menos falíveis.

9. Uma outra técnica que se vai mostrando inadequada é o reconhecimento do autor do crime feito pela própria vítima. Nestes casos socorre-se, por norma, do espelho unidireccional ou de uma série de fotografias.

10. Brandon Garrett, Professor de Direito da Universidade de Virgínia, diz que alguns erros de identificação decorrem de falhas de memória por parte da vítima, aliadas a alguma sugestão do agente que a acompanha. O que não significa, porém, que o agente que acompanha a vítima tenha deliberadamente a intenção de a conduzir para um determinado resultado. O erro de identificação pode ser também, seguramente, uma consequência do estado psicológico em que a vítima se encontra. Ele pode ser bastante susceptível e estar até demasiado fragilizada.

11. Por sorte, os dois casos de erros judiciais que sinalizei não impuseram qualquer condenação à morte. Contudo, eles podem remeter-nos para o questionamento deste tipo de condenação.

12. Pelo menos em alguns países, a evidência empírica já demonstrou a relativa ineficácia da pena de morte para estancar a criminalidade.

13. Os Estados Unidos são um exemplo paradigmático onde vigora a pena de morte na maioria dos seus estados e, todavia, os níveis de criminalidade são ainda demasiado elevados. Ao contrário do Reino Unido, em que se aboliu a pena de morte e apresenta níveis de criminalidade relativamente baixos. Foi com base nesse facto que, em 1989, as autoridades britânicas recusaram o retorno à pena de morte, como era sugerido por alguns sectores da opinião pública.

14. Mas há também quem conteste a pena de morte apenas com base em argumentos de ordem moral: encarada a vida como o bem maior que a humanidade possui, ninguém terá o direito de a eliminar, nem mesmo o Estado.

15. Outros argumentam contra a pena de morte a partir de considerações de ordem religiosa: sendo a vida dada pelo Criador, ninguém a pode retirar porque, retirando-a, está esse alguém a atentar contra o próprio Criador.

16. Albert Camus, escritor e filósofo francês, nascido na Argélia (já falecido) designou, inclusive, a pena de morte como um “assassínio premeditado”, na medida em que é o próprio Estado quem programa o assassinato, marcando o dia e a hora da execução. O Estado contrata quem vai aplicar a sentença, transportando a vítima para o local onde será executada. O Estado ainda publicita o acto e convida gente para assistir. Chega mesmo a transmitir as imagens pela televisão. Foi o que se viu com a execução de Saddam Hussein, no dia 30 de Dezembro de 2006.

17. O recente facto que comecei por narrar, o de Cornelius Dupree Jr., assim como o de Sean Hodgson, devem fazer-nos pensar seriamente sobre a solução radical que é a pena de morte.

18. Para alguns, a pena de morte pode parecer eficaz para a resolução da questão da criminalidade. Mas, pelo menos em determinados países, a experiência empírica não tem demonstrado a sua eficácia.

19. A pena de morte colide com determinados princípios morais e éticos. Ela põe mesmo em causa os deveres do Estado, como manifestou Albert Camus.