quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O PRIMEIRO DIA DO RESTO DA MINHA VIDA

1. Passaram já 50 anos desde o 4 de Fevereiro de 1961, o dia em que um punhado de homens simples, hoje justamente glorificados como heróis, utilizou meios rudimentares de ataque para questionar pelas armas a presença colonial portuguesa em Angola. Eu era, então, um jovem, mas já me preocupava com o que se passava no mundo, no nosso continente e, em particular, no nosso país. Por um conjunto de razões, posso dizer que amadureci precocemente.

2. A razão da minha especial sensibilidade e da curiosidade com que olhava o mundo à minha volta é fácil de explicar. Por um lado, eu acompanhava muito de perto os passos dos “mais velhos” da minha família, em especial os seus cuidados e as suas inquietações. Por outro lado, porque o “Processo dos 50” – que iniciou em 1959 e se estendeu ao ano de 1960, envolvendo inúmeras prisões políticas e posteriores julgamentos – mobilizou a atenção da nossa sociedade.

3. No “Processo dos 50” estiveram envolvidas pessoas muito próximas do meu meio ambiente. Era, sobretudo, gente ligada aos movimentos culturais, cívicos e políticos de que sou originário e de que me considero também, de certa forma, um produto social: o Mário Guerra, André Franco de Sousa, Gabriel Leitão, Liceu Vieira Dias, Ilídio Machado, Amadeu Amorim, Higino Aires, Mendes de Carvalho, Noé Saúde, André Mingas e outros mais que não cito aqui por economia de espaço, mas que se tornaram, igualmente, relevantes para a formação da minha consciência cívica e patriótica.

4. A designação “Processo dos 50” é um fruto da decisão de Joaquim Pinto de Andrade de enviar para o irmão, Mário Pinto de Andrade – que já estava no exterior, em Paris – um documento denunciando a prisão de cerca de 50 nacionalistas. Mário Pinto de Andrade deu, então, projecção internacional a essa repressão pidesca, desmascarando o regime colonial e fascista dirigido por Salazar.

5. Mas a minha precocidade política tem ainda raízes mais antigas, muito fruto da mãe que tive e cuja personalidade me marcou para sempre. Aos 10 anos de idade, seguia a minha mãe na campanha eleitoral para a Presidência da República, em que os representantes da Oposição ao regime eram o General Humberto Delgado e o Dr. Arlindo Vicente, o advogado que deu rosto pelos desígnios do Partido Comunista Português, nessa altura já ilegalizado. O regime de Salazar tinha como candidato o Almirante Américo Tomaz, o homem de mão de António de Oliveira Salazar, o poderoso Presidente do Conselho. A minha mãe começou por me levar às sessões de esclarecimento dos apoiantes do Dr. Arlindo Vicente, por quem tinha simpatias. Face à desistência deste, a certa altura, a minha mãe passou a apoiar o candidato Humberto Delgado, em nome da Oposição. Indirectamente, e por interposta pessoa, claro (no caso, a minha mãe), foi esse o meu baptismo de fogo político e democrático, ainda em tenra idade.

6. A verdadeira epopeia e o drama que acompanhou o assalto ao paquete português “Santa Maria”, seguido do seu desvio pelos homens comandados pelo destemido Capitão Henrique Galvão transformou-se, também, em mais um estímulo para aguçar a curiosidade de um jovem como eu, na altura, estudante do Liceu Salvador Correia. No meu Liceu, o ambiente fervilhava, fruto do contínuo surgimento de novos países africanos independentes.

7. O ano de 1960 e os seguintes trouxeram muitos países africanos para o mapa político do mundo. Vi tudo isso a passar-me diante dos olhos, espicaçando-me a mente e estimulando-me os neurónios. Era a história a acelerar. A história ganhava contornos inesperados, numa verdadeira velocidade supersónica.

8. A África despontava. Eram exibidos nomes emblemáticos, fazendo cartaz. Estes homens passaram, então, a simbolizar a nossa vontade de romper as grilhetas: Kwame Nkruman, Ahmed Sekou Touré, Leopold Sèdar Senghor, Patrice Lumumba. Do outro lado do mundo, travavam-se também duras batalhas pelos Direitos Cívicos dos negros norte-americanos. Na Ásia combatia-se e surgiam novos países. Não era possível ser-se indiferente, mesmo até para um imberbe, como eu. E, de repente, dá-se o levantamento do dia 4 de Fevereiro…

9. O levantamento do dia 4 de Fevereiro traduziu-se no ataque simultâneo a três objectivos estratégicos da presença colonial: a Cadeia de São Paulo, a Casa da Reclusão e a Esquadra da PSP na estrada de Catete.

10. De modo algum poderia causar grande surpresa. Sentia que isso iria ter que acontecer, mais cedo ou mais tarde. Estava escrito nas estrelas… Havia todos os ingredientes para que tal sucedesse. E aconteceu, felizmente… O “4 de Fevereiro” simboliza, de facto, o início de uma longa e dolorosa caminhada até ao alcance da nossa independência. Foi, propriamente, o primeiro dia do resto das nossas vidas…

11. Mesmo que antes – e também depois – tenha havido outros momentos de grande simbolismo no processo da nossa luta de libertação nacional, o “4 de Fevereiro” marca o início de “uma coisa” que os angolanos mais conscientes e patriotas esperavam. Foi o quebrar das algemas. Depois, com o “15 de Março”, rompemos as grilhetas e tornámo-nos aptos para esgrimir os melhores argumentos face ao opressor colonial.

12. Por enquanto, esqueçamos os excessos que se cometeram de parte a parte. Lembremos apenas o simbolismo desses actos, que exprimiram de uma forma magistral a revolta de um povo face a séculos e séculos de opressão e humilhação. Nesses dias, homens simples, muitos deles iletrados, tornaram-se heróis, passando para a história como os precursores da nossa luta armada de libertação nacional. Depois, passados alguns anos, tornei-me companheiro de alguns deles, conhecendo-os na dor, no sofrimento, na intimidade.

13. A corrente que eles iniciaram arrastou outras gerações, entre as quais a minha. Devemos-lhes muito, porque nos serviram de farol na longa caminhada que culminou com a nossa vitória. Recordo-os sempre com saudade e, sobretudo, com carinho: o Paiva, o Imperial, o Neves Bandinha, o Virgílio Sotto Mayor, o Makiala, o Velho André, o compadre Sebastião Badiaba, o compadre Francisco da Costa, e outros mais.

14. Eleger o dia 4 de Fevereiro como “o primeiro dia do resto das nossas vidas” não é retrair o valor simbólico dos outros momentos de valor e de glória também protagonizados pelo povo angolano. Nessa ocasião, através de um punhado de heróis, os angolanos sinalizaram para o mundo a sua determinação e vontade de conquistarem a independência, custasse o que custasse.

15. Por isso, para mim – sem dúvidas! – o dia 4 de Fevereiro de 1961 passou a ser “o primeiro dia do resto da minha vida”.

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