quarta-feira, 9 de março de 2011

A DINÂMICA DOS PROCESSOS SOCIAIS E POLÍTICOS

1. Os recentes desenvolvimentos políticos criaram, no seio da nossa população, um sentimento de ansiedade, ao que se seguiu o medo somente comparável ao que se viveu por altura dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977.

2. A ansiedade decorreu da suposição de que as transformações que, presentemente, ocorrem no norte de África e no Médio Oriente se repercutiriam, de imediato, na África subsaariana, Angola, portanto, incluída. O medo surgiu como consequência da ideia de que eclodiriam conflitos violentos, colocando de um lado apoiantes do actual regime e, do outro, contestatários ao poder, todos mais ou menos fanatizados e entrincheirados por detrás das suas convicções. Tudo isso merece, pois, alguma clarificação e reflexão.

3. Por norma, cada região do mundo, e mesmo cada país tem a sua própria dinâmica, fruto do estádio de desenvolvimento em que se encontra e da consciência política e social que a sua população possui. Portanto, os factos não se repetem, ipsis verbis, em todos os lugares e, sobretudo, na mesma altura. Eles só se estendem como um rastilho imparável quando encontram o ambiente apropriado.

4. Será que a situação política e social é idêntica em toda a extensão da África e no Médio Oriente? Em alguns domínios, sim. Por exemplo, de um modo geral, o que vemos por todo o lado é a perpetuação de velhas ditaduras, cada uma com as suas características específicas, mas, mesmo assim, ditaduras. Em quase todos esses países, vamos também assistindo à tentação de monarquização das repúblicas, com os velhos ditadores a ensaiarem passos quase irresistíveis para serem sucedidos pelos seus rebentos… Ou então, para deixarem no poder quem se lhes assemelhe, garantido, assim, a continuidade dos regimes.

5. Porém, são perfeitamente detectáveis acentuadas diferenças que têm muito a ver com a composição e o processo de formação dos países. Mesmo no norte de África e no Médio Oriente é visível que nem todos os processos reivindicativos assumem o mesmo tom. Vejamos, por exemplo, o que se passa na Líbia e no Bahrein.

6. Na Líbia questiona-se o sistema de partidos e o regime político, mas não está a ser posto em causa o tipo de Estado. Nesse país do norte de África prevalece o sistema de partido único, com um único político legalizado, a União Socialista Árabe. Com este partido político e com a força militar que o Coronel Gaddafi conseguiu erigir, à custa das enormes receitas geradas pela exploração do petróleo, ele instalou e pretende perpetuar, passando o poder a um dos filhos, uma ditadura que já leva 42 anos de existência.

7. Pelo que me apercebo, mesmo que os revolucionários líbios estejam a hastear publicamente a bandeira de antes do golpe de Estado do Coronel Gaddafi – a bandeira da monarquia – o Estado republicano ainda não foi posto em causa. Mesmo que se mostrem demasiado agastados com a república imposta pelo Coronel, não se ouvem apelos ao restauro da monarquia. Portanto, os revolucionários questionam o sistema de partidos assim como o regime político, isto é, o conjunto das instituições políticas que o Estado criou para exercer o seu poder sobre a sociedade.

8. O regime político instituído por Gaddafi á anti-democrático pois não realiza eleições livres, não garante a liberdade de imprensa, desrespeita os direitos fundamentais dos cidadãos, não permite uma oposição organizada, muito menos admite a liberdade de expressão política. A luta que se trava na Líbia é, pois, uma luta pela democracia, dentro de um Estado republicano.

9. No Bahrein, a contestação tem outros tons, mesmo que se reivindiquem também liberdades democráticas. As plenas liberdades democráticas só são possíveis com a constituição e o funcionamento dos partidos políticos, e se o regime político não for uma ditadura. Estranhamente, há quem tenha conseguido manter ditaduras em sistemas políticos multipartidários.

10. No Bahrein não se questiona o Estado monárquico mas, sim, o tipo de monarquia. A monarquia reinante no Bahrein é uma continuação da que foi imposta, há mais de 200 anos, pelo príncipe Ahmad Bin Khalifa, originário da Arábia Saudita. Os Al Khalifa, professam o ramo sunita do islão, governando o país de um modo hegemónico, impondo-se sobre os xiitas, o outro ramo do islão que é maioria no território. Isto torna muito peculiar o actual momento político nesse país do Golfo Pérsico. Acredito, porém, que entre os contestatários haja quem se bata pela instalação de um regime democrático e não apenas pelo derrube da actual monarquia minoritária.

11. Na Jordânia, outra monarquia do Médio Oriente, a luta centra-se mais na denúncia de alguns defeitos do regime, como a corrupção, a precariedade das condições de vida da maioria da população. Mas também se questiona já a falta de liberdades democráticas. Não se questionou ainda a monarquia enquanto forma de Estado.

12. Para entendermos o que se passa naquela parte do mundo, há que não confundir conceitos, como tipo de Estado, sistema de partidos e regime político. Por vezes, confunde-se tudo isso com o sistema de governo. Na realidade, existe uma variedade de sistemas de governo e qualquer um deles pode acolher perfeitamente uma democracia viva e vigorosa. O governo presidencialista americano, o sistema parlamentarista britânico, o semi-presidencialismo francês, o semi-presidencialismo português, garantem perfeitamente as liberdades democráticas.

13. Muitos dos povos do norte de África e do Médio Oriente que estão hoje em turbulência são herdeiros de civilizações milenares e contribuíram muito para o desenvolvimento material, cultural e espiritual da humanidade. São povos com uma história muito rica. Por isso, não se estranhe a enorme capacidade de indignação que estão a demonstrar. Não se estranhe também o modo como, em tão pouco tempo, conseguiram pôr em marcha uma máquina de resistência eficaz. A organização dos seus movimentos de contestação sinaliza a sua grande qualidade e cultura.

14. Embora os ditadores que estão a ser questionados tenham optado por culpabilizar a Al-Qaeda, tem ficado bem claro que as razões da luta são, de facto, outras. Contudo, eu não descarto a hipótese de a Al-Qaeda e outras similares e afins estarem à espreita para, no devido tempo, retirarem o proveito da presente situação de instabilidade social e política.

15. Caso os processos democráticos vinguem plenamente no norte de África e no Médio Oriente, julgo que o espaço político desses movimentos radicais ficará mais limitado, e o tempo se encarregará de os retirar do caminho. Haverá também um maior espaço de manobra para a busca de uma solução mais justa e mais equilibrada para a questão palestiniana, desaparecendo o álibi de que, do outro lado, só existem ditaduras.

16. Com tudo isto quero dizer que a ansiedade sentida relativamente a transformações imediatas nos países ao sul do Sahara, por contágio do norte, deve merecer alguma contenção.

17. Os processos sociais e políticos podem, sim, ser acelerados ou retardados, mas cada um tem a sua própria dinâmica. Engana-se, pois, quem alimenta a ilusão da imobilidade das sociedades.

18. Mesmo que o papel das individualidades seja importante, em especial, em determinados momentos, os processos sociais e políticos jamais ocorrem por inspiração individual. Em última instância, é a dinâmica da sociedade e a consciência colectiva dos povos que lhe marca o tom e o ritmo.

19. O excesso de personalização dos processos e o excesso de voluntarismo podem até provocar perdas irreparáveis ou mesmo recuos históricos abismais.

Sem comentários:

Enviar um comentário