quinta-feira, 17 de março de 2011

OS CONFLITOS NAS MONARQUIAS ÁRABES

1. Tenho falado muito sobre as transformações que, presentemente, têm lugar no mundo árabe, e é ponto assente que elas constituem verdadeiras revoluções, dado que, em alguns casos, implicam mesmo a deposição das velhas ditaduras e a instalação de uma nova ordem política que é a negação da velha ordem. Foi assim, pelo menos, na Tunísia. Foi assim, também, no Egipto. E espera-se que o mesmo ainda venha a suceder na Líbia, não obstante a resistência sanguinária oposta pelo caduco, desequilibrado e renitente ditador, agora secundado por filhos que, pelo que vemos, são em tudo muito semelhantes ao seu progenitor.

2. No texto que escrevi na semana passada, debrucei-me demoradamente sobre algumas questões de conceito que se me afiguram fundamentais para o entendimento do fenómeno político. Afirmei, por exemplo, que existem particularidades interessantes na análise das lutas de cada um desses países. Contudo, numa perspectiva global, existe um denominador comum em todos esses processos: reivindicam sempre regimes democráticos.

3. Mas eu disse também que, em alguns deles, a contestação coloca o assento tónico na qualidade da forma de Estado sem, pois, o questionar na sua globalidade. Ilustrei a ideia com o que hoje se passa no Bahrein, onde não se pede a extinção do Estado monárquico mas, sim, a variante concreta de monarquia que o assume. Pormenores como este estimulam-nos, pois, a ter algum cuidado na análise dos processos que se desenrolam na África do Norte e no Médio Oriente.

4. Nos últimos dias, e com agrado, tomámos conhecimento da posição pública assumida pelo soberano marroquino, o Rei Mohammed VI, propondo alterações substanciais no modelo constitucional em uso no seu país. Só este facto justifica já que eu me debruce por mais algum tempo sobre os questionamentos que são colocados às monarquias dessa região do mundo, deixando por isso de lado os conflitos nos Estados republicanos. Passemos, então, em revista os conflitos mais salientes nas presentes monarquias.

5. Na Jordânia, os protestos ainda são relativamente pacíficos, se comparados com os de outros países da região. Os manifestantes abordam questões como a necessidade de se combater o desemprego, o aumento dos preços dos bens essenciais e, sobretudo, o direito de elegerem o primeiro-ministro. Este último problema tem claras e profundas implicações constitucionais.

6. Para tentar acalmar os manifestantes, o Rei Abdullah da Jordânia decidiu demitir o primeiro-ministro, tido por alguns como o principal culpado pelo estado menos bom que a economia do reino hachemita atravessa. Ao decidir-se apenas pela demissão do primeiro-ministro e a sua substituição por uma outra figura, o Rei Abdullah da Jordânia não atacou o problema no seu verdadeiro foco, tendo passado por cima do problema, e confundindo, intencionalmente, a sua essência.

7. O que está em causa no reino hachemita é o carácter absolutista da actual monarquia, demasiado desfasada daquilo que são os requerimentos dos tempos modernos. Tal como está estruturada, ela mostra-se incompetente para fazer funcionar um regime democrático. Colocando nas mãos do Rei a capacidade de escolher o primeiro-ministro, dá-se-lhe, pelo menos indirectamente, poderes executivos, sujeitando o governo à sua vontade. Faz-se tábua rasa sobre o voto popular.

8. Muitas das actuais monarquias constitucionais albergam perfeitamente regimes democráticos. Veja-se os casos de países europeus como a Grã-Bretanha, Noruega, Dinamarca, Suécia, Holanda, Espanha, Bélgica, onde os Reis e as Rainhas possuem poder de representação e, em casos excepcionais, poder de arbitragem, sempre que surgem conflitos graves entre as forças políticas democraticamente eleitas.

9. O carácter democrático de um regime não se mede pela forma de Estado em que se enquadra. Ou seja, não se é mais democracia por se ser uma república, ou menos democracia por se ser uma monarquia. O mundo está cheio de ditaduras que são repúblicas e de democracias que são monarquias.

10. No Bahrein, outra monarquia, o que se questiona ainda é o domínio absoluto da nobreza sunita, minoritária, sobre os xiitas, maioritários. Na Jordânia, tal questão não se coloca, pois os sunitas são esmagadoramente maioritários e a monarquia dominante pertence a essa mesma facção religiosa. Se houver algum conflito de carácter religioso ele poderá ter um sinal contrário ao do Bahrein, com a minoria religiosa, os xiitas eventualmente a requerem maior poder de representação.

11. O Rei de Marrocos, Mohammed VI terá percebido melhor o fundo da questão e, por isso mesmo, decidiu-se por propor uma alteração profunda no modelo constitucional em vigor. Vai sujeitar a referendo popular uma proposta constitucional prevendo “um governo eleito, dimanado da vontade do povo expressa nas urnas e recebendo a confiança da maioria da Câmara dos Representantes”.

12. O Rei Mohammed VI anunciou ainda um conjunto de outras medidas com vista ao reforço das liberdades individuais, do pluralismo, dos direitos humanos, a independência da justiça e o papel dos partidos políticos. Foi até mais ousado ao propor que se inscreva na nova constituição o reforço da regionalização – seguramente para traçar um canal por onde passe a solução do problema do Sahara Ocidental.

13. A atitude do Rei Mohammed VI contrasta com os comportamentos repressivos e a visão de curto prazo de outros soberanos da região que optaram pela repressão dos contestatários. Contrasta até com as atitudes de alguns chefes de Estado republicanos da sua região e de outras regiões do nosso continente, que não conseguem entender que os “muros” que ainda existem no mundo têm também os seus dias contados.

14. Cada vez me convenço mais de que uma governação justa e participativa passa, necessariamente, pelo alargamento do espaço das liberdades democráticas. Não serão, pois, as constituições feitas à medida do corpo político de certas personalidades que melhorarão os processos democráticos e estimularão a paz social e a paz política. Uma repartição desequilibrada do poder político, a concentração do poder económico nas mãos de poucos e o excesso de personalização dos processos políticas funcionam como verdadeiras bombas colocadas em lugares estratégicos. Mais tarde ou mais cedo, elas explodirão, causando danos irreparáveis.

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