quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O ATLÂNTICO QUE NOS SEPARA E QUE NOS APROXIMA

  1. Envio-vos este postal de São Paulo, Brasil, onde estou desde há alguns dias, para leccionar parte de uma disciplina na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Para mim, vir a São Paulo deixou de constituir novidade, dado que, nos últimos anos, tenho estado nesta cidade com alguma regularidade, mesmo que por motivos diversos.

  1. Recordo-me que, da primeira vez que vim a São Paulo, transitei por Joanesburgo e pernoitei no hotel do aeroporto, a espera da ligação no dia seguinte. Trazia um forte paludismo encubado no meu organismo, pelo que passei longas horas de sofrimento. Felizmente, os comprimidos de quinino que comprei no aeroporto reduziram o tempo e a profundidade da minha angústia.

  1. Corria, pois, o risco de ser medicado e trado no Brasil. Se tal sucedesse, declarariam certamente que tinha apanhado o dengue, uma doença tropical que apresenta os sintomas da malária, confundindo-as, e com um enorme risco.

  1. O dengue e a malária são como que primos em primeiro grau, mesmo que de estirpes virais diferentes. Por isso devem ser tratados com terapêuticas distintas.

  1. Apanhamos o dengue se formos picados pela fêmea contaminada do mosquito Aedes aegypti ou Aedes albopitus. Por sua vez, o paludismo é transmitido pela picadela da fêmea do mosquito Anophefes. Por isso, sempre que venho ao Brasil, cuido primeiro de saber se tenho ou não encubado o vírus deste último malandro…

  1. Da primeira vez que viajei para o Brasil, guardo a má memória dessa doença mas, igualmente, do contacto que tive com algumas nossas compatriotas que faziam daquela rota o seu negócio. Vinham regularmente a este lado do Atlântico onde me encontro agora para buscar mercadorias e, depois, as venderem em Angola.

  1. “Vi propriamente visto” – creio que assim diria Luís de Camões. Ou então, diria a minha mãe: “Vi com estes olhos que a terra há-de comer” o esforço e as dificuldades por que passavam essas mulheres, esperando longas horas pelo dia seguinte, para fazerem a ligação. Horas e horas, deitadas no chão, em condições incómodas.

  1. Passei, pois, a admirar-lhes ainda mais o espírito empreendedor. Tinham encontrado um modo expedito para conseguirem obter os rendimentos para se sustentarem a si e às suas famílias, numa altura em que, entre nós, prevalecia uma enorme carência dos produtos que elas comercializavam. Outras angolanas, comerciantes informais, arrojavam-se também por paragens mais complicadas – sem dominarem o inglês – como a própria África do Sul, Namíbia, e até mesmo o Dubai.

  1. Felizmente, a paz e a normalização da vida social permitiram estabelecer os circuitos comerciais formais, e hoje já podemos adquirir nesses estabelecimentos a maioria dos bens industriais comuns de que necessitamos. Reduziu-se, pois, bastante a imagem degradante do passageiro angolano sempre carregado de compras. Como se fosse um armazém ambulante… É, seguramente, um dos ganhos económicos e sociais do fim do conflito armado.

  1. A possibilidade que temos hoje de viajarmos pelo mundo sem carregarmos às costas o estigma de quem parece estar em busca de um refúgio, de um porto de abrigo, de um local para trabalhar ou mesmo para estudar, é outra boa consequência da paz e da normalização da nossa vida.

  1. Hoje, vamos e voltamos, e festejamos efusivamente – mesmo até com palmas – quando o avião toca o solo nacional. É o nosso agradecimento por nada de mal nos ter acontecido no voo. Mas é, sobretudo, a alegria pelo regresso ao ponto de partida. Deixámos de carregar o estigma de parecermos um povo errante. Angola é de novo o nosso porto de abrigo, é o nosso torrão de consolo. Mesmo que, por vezes, seja carente e pouco acolhedora.

  1. Como vos disse de início, estou em São Paulo, para leccionar algumas aulas. A cidade de São Paulo é uma cidade muito grande e é, também, uma grande cidade. Tem a maior área metropolitana do Brasil, da América Latina e até mesmo do Hemisfério Sul. Possui o 10º maior PIB do mundo. É sede de 2/3 das multinacionais instaladas no Brasil. É uma verdadeira metrópole.

  1. São Paulo é praticamente contemporânea da cidade de Luanda. Ambas festejam o seu aniversário no mesmo dia: 25 de Janeiro. São Paulo surgiu 26 anos antes de Luanda, no ano de 1554, com a edificação, no alto de uma colina escarpada, de uma povoação de nome São Paulo de Piratininga. Ela nasceu em torno de um colégio mandado construir por doze padres jesuítas, entre os quais Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. O objectivo era evangelizar os índios que viviam na região com o mesmo nome: Piratininga.

  1. Luanda surgiu como povoação colonial em 1576 (uma pequena vila), por determinação de Paulo Dias de Novais, com o nome de São Paulo de Luanda. Recebeu foral de cidade cerca de 30 anos mais tarde, em 1605.

  1. Durante a viagem para São Paulo, fiquei atento ao percurso do avião, correndo sempre sobre o Atlântico. Pelo monitor instalado no assento de frente, e mais uma vez, fui olhando para a relação entre Luanda e a cidade do Recife, do outro lado do Atlântico, na costa brasileira. Se traçarmos uma linha horizontal a partir de Luanda, depois de percorrer o imenso Oceano, ela irá tocar precisamente no Recife, a capital do estado do Pernambuco, a maior aglomeração urbana do Nordeste brasileiro.

  1. O Recife foi a principal praça dos holandeses no Brasil, um verdadeiro império que se estendia ao longo da costa até ao norte, no mesmo período em que os holandeses também dominavam partes da costa angolana, com destaque para Luanda. Foram expulsos de Luanda em 1648, após sete anos de ocupação, numa expedição comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro. A nossa cidade capital passou então a chamar-se São Paulo da Assunção, em homenagem a Nossa Senhora da Assunção.

  1. Era o interesse do tráfico de escravos a ditar o comportamento dos governantes brasileiros. A produção do açúcar no Brasil necessitava de fortes contingentes de mão-de-obra escrava e muita dela provinha de Angola. Anos antes, fracassara uma tentativa semelhante sob o comando do governador do Rio de Janeiro, Francisco de Souto-Maior.

  1. Gosto de viajar para o Brasil, por muitas razões. Uma delas é a minha curiosidade por entender melhor este país que é já uma das 10 maiores economias do mundo.

  1. Gosto imenso da história do Brasil: rica, multifacetada e, sobretudo, muito ligada à nossa história. Muitos dos nossos sangues cruzaram-se nesse misterioso percurso atlântico.

  1. Afinal, é esse Oceano Atlântico que nos separa. Mas é, igualmente, o Oceano Atlântico que nos aproxima. Fim do Postal. Vai sem imagens. Penso que as palavras dizem o suficiente.

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