domingo, 25 de setembro de 2011

REALMENTE, É MUITO…

  1. Quando o presidente Agostinho Neto morreu, eu estava com residência fixa no Leste de Angola (deportado no Moxico), depois de já ter passado cerca de 3 anos nas prisões da DISA, em Luanda. Passaram já 32 anos, mas ainda me recordo, com quase todos os pormenores, de tudo quanto se passou, sobretudo dos pensamentos que, de imediato, invadiram a minha cabeça.

  1. Estávamos a viver um momento suis generis: morrera o homem que proclamara a independência nacional e que governara o nosso Estado finalmente soberano, durante os primeiros três anos. Mesmo que tenha sido preso e, depois, deportado por sua ordem, invadiu-me um sentimento de pesar, já que cada um ao seu nível e no seu espaço fôramos, afinal, actores de uma única e mesma gesta. Era o Camarada Neto que desaparecia precocemente e de uma forma trágica. Rendi-lhe, por isso, um prolongado silêncio.

  1. Longe onde estava, tive conhecimento da morte do Camarada Neto apenas no dia 11 de Setembro, pelo noticiário das 13 horas da Rádio Nacional. Acredito que quem estava em Luanda pudesse ter sabido do infausto acontecimento no próprio dia 10, ou então, cedo na manhã do dia 11, pois é sempre mais fácil as novidades chegaram à capital. No Leste do país, numa altura em que até a rede fixa de telefones era precária, a única possibilidade de receber tal notícia só podia ser pela Rádio Nacional. Foi isso o que sucedeu, precisamente à hora do almoço.

  1. O sentimento de pesar pela morte de Agostinho Neto colidiu de imediato com o receio de, entretanto, puder emergir uma qualquer forma de sublevação. Poderia ser sob s forma de um levantamento popular, ou até mesmo de uma “quartelada”, ou seja, um golpe militar estimulado por alguma ala interna do MPLA.

  1. Via-se, assim, como muito difícil a substituição de um Presidente com o simbolismo e o poder que Agostinho Neto possuía. O país vivia ainda o rescaldo das diversas (3) proclamações unilaterais de independência e, sobretudo, do trauma do “27 de Maio” de 1977. Múltiplas feridas ainda sangravam e eu, lá longe, sozinho, facilmente exposto à vontade de um qualquer eventual vingativo…

  1. O Leste de Angola, sobretudo o Moxico, era um local de má memória. Foi lá que tiveram lugar dos massacres mais hediondos praticados na sequência do “27 de Maio”. Soltaram-se os ódios, sem controlo. Apelou-se a uma vingança sem freio e sem regras. Mataram-se valiosos quadros civis e militares, na sua maioria inocentes. Era no Moxico que se albergava também o tristemente famoso Campo de Concentração da Kalunda, tido como um verdadeiro campo de extermínio. Foi ali que os diabos surgiram feitos homens soltando fogo, expelindo labaredas, alimentando-se do sangue humano. A Kalunda é uma história de muito má memória…

  1. Ali estava eu, no Moxico, no Luena, tão próximo do inferno e demasiado exposto ao ódio e à sede de vingança dos algozes de outros inocentes… Pensei, então, que a morte de Agostinho Neto poderia ser também para mim o princípio do fim… Admiti a hipótese de que poderia também vir a ser emulado no altar de todas as frustrações e de todos os recalcamentos. Alguém poderia julgar ter chegado o momento apropriado para realizar o seu ajuste de contas com a história…

  1. É assim em todas as épocas. Os oportunistas aproveitam-se dos momentos de grande tensão social e política para extravasarem as suas frustrações e libertarem os seus instintos. Os oportunistas emergem quase que do nada e, depois, fazem-se passar por verdadeiros heróis da circunstância... Foi esse o meu receio. Estava exposto. Estava sujeito ao ódio de um qualquer desmiolado. A morte de Agostinho Neto tornou-se quase que um pesadelo...

  1. Passado o transe começou então a falar-se insistentemente nas diversas hipóteses para ocupar o lugar deixado vago por Neto: Lúcio Lara? Ambrósio Lukoki? Pascoal Luvualu? José Eduardo dos Santos?

  1. Chegou, entretanto, ao Luena, em missão de serviço, o Eng. Fernando Paiva, meu antigo camarada do MPLA e da Revolta Activa, com quem também estive preso nos calabouços da DISA. Foi com o Fernando Paiva que pude, finalmente, reflectir sobre esses diversos cenários.

  1. Evacuado Agostinho Neto para a União Soviética, deixou a substituí-lo precisamente José Eduardo dos Santos, então 1ª Vice-Primeiro-Ministro e Ministro das Relações Exteriores. Com uma leitura dos acontecimentos baseada na sua longa experiência de MPLA, o Fernando Paiva garantiu-me que o sucessor de Agostinho Neto seria seguramente o jovem José Eduardo dos Santos. E disse-me mais: que a governação de José Eduardo dos Santos seria uma incógnita, quer pelo seu passado no seio da organização, quer pelo seu carácter pessoal e personalidade. JES era demasiado enigmático. Pouco se lhe ouvia falar.

  1. Mesmo por ser demasiado enigmático é que, naquela circunstância, quase todos os elementos da cúpula do MPLA apontaram para JES. Simultaneamente, todos pensaram que facilmente o poderiam influenciar. Os outros potenciais candidatos à sucessão de Agostinho Neto possuíam perfis polémicos, ou eram demasiado previsíveis.

  1. O meu falecido camarada Fernando Paiva narrou-me, então, um episódio ocorrido durante a luta de libertação, no início dos anos da década de 70, quando um conjunto de militantes (destacados combatentes), frustrados certas opções de Lúcio Lara decidiu sublevar-se, detendo-o, humilhando-o e exigindo o seu afastamento da Direcção do Movimento. Fizeram chegar a Agostinho Neto esta e outras reivindicações, na sua maioria contrárias ao ideário do MPLA. Neto recusou-as, liminarmente.

  1. Pela persistência do protesto e pelo carácter das reivindicações (matizadas de tons raciais) Agostinho Neto declarou que preferia abdicar do cargo de Presidente do MPLA. Os revoltosos desvalorizaram tal declaração e, disse-me o Fernando Paiva, que apresentaram como alternativa a Neto o jovem José Eduardo dos Santos. JES tinha regressado recentemente da sua longa estadia como estudante na União Soviética, e era adjunto de Fernando Paiva nas Telecomunicações do Movimento, juntamente com Evaristo Domingos Kimba.

  1. Há alguns anos, um outro amigo meu, um muito conhecido “Mais Velho”, narrou-me pormenores interessantes dos desenvolvimentos dramáticos que ocorreram quando se colocou a necessidade de se substituir Agostinho Neto, aquando da sua morte. Ponderaram-se questões de vária ordem, como as de carácter sócio-geográfico e sócio-histórico, dada a correlação de forças no seio do MPLA. O meu amigo “Mais Velho” tornou-se, pois, um dos protagonistas mais activos da opção por JES.

  1. Alguns de nós estamos ainda lembrados do modo como uma determinada “Ala” do MPLA se bateu para que JES não mexesse “numa palha”, nem retirasse “uma única vírgula” à herança política deixada por António Agostinho Neto. Alterar o ideário de Neto seria uma traição. Essa foi uma época do grande fervor revolucionário, e havia quem se julgasse o verdadeiro guardião das “conquistas”.

  1. Durante muito tempo JES não mexeu mesmo numa “palha”, porque estava demasiado condicionado pelos seus pares. Mas houve mesmo quem o achasse simplesmente o continuador de um projecto para que fora moldado na sua juventude como estudante na União Soviética. Estaria então “a jogar o jogo” de que mais gostava…

  1. Na realidade, os primeiros anos de JES no poder máximo não vieram bafejados por um qualquer arejamento político. As suas opções políticas e o seu discurso político deram evidências de um claro “continuísmo” ideológico. JES sempre fez questão de acentuar a necessidade de se aprofundar o “carácter da revolução”. E lá foi ele injectando cada vez mais “sangue operário e camponês” nos órgãos de direcção do Partido, para assim, dizia, se salvaguardar os desígnios daqueles que “tinham sido os mais explorados durante o período colonial”… Tal “rigor revolucionário” frustrou algumas expectativas e continuou a desmobilizar os segmentos sociais que iam sendo sistematicamente marginalizados e hostilizados.

  1. Foi esse mesmo JES que, face às mudanças ocorridas no mundo – com a queda do Muro de Berlim e a falência do modelo soviético – inflectiu, redesenhando o mapa das suas alianças políticas e promoveu mudanças na política económica. Agora a opção era criar ricos, o que é feito à custa do erário público, do tráfico de influências, do espaço completamente livre para a corrupção, da apropriação ilícita do património de todos.

  1. JES faz tudo para criar uma imagem de homem de espírito aberto e de mente arejada. Faz o discurso de alguém muito comprometido com a democracia e com o desenvolvimento de uma economia de mercado. Mas, fá-lo de um modo atabalhoado e sem coerência. Por isso, atrapalha-se, tropeça e engasga-se.

  1. JES criou um regime altamente personalizado e demasiado centrado na sua pessoa. Estreitou todo o espaço político e económico por onde só passa ele e quem ele quer. E os seus cortesãos, anafados e soberbos, proclamam para eles próprios se ouvirem: No Velho ninguém toca! Ele é o único capaz de dirigir o país! Deixem o Camarada Presidente acabar a obra!

  1. Volta e meia, o seu regime atropela os mais elementares direitos humanos. Afinal, a democracia não lhe corre no sangue nem lhe alimenta a alma. Foi o próprio JES que disse que “a democracia foi-nos imposta” e que “os direitos humanos não enchem a barriga”.

  1. Agora já compreendo melhor porquê que os jovens que hoje o contestam na rua escolheram a palavra de ordem: 32 É MUITO!

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