segunda-feira, 31 de março de 2014

O “ASSOPRO” E O “ASSOPRADO”


  1. A venda ambulante na cidade capital tornou a convocar a atenção da opinião pública, por duas razões interligadas: porque, recorrendo sobretudo às redes sociais, alguém terá anunciado a convocação, para o dia 15 de Março, de uma manifestação pública em que os protagonistas seriam as chamadas “zungueiras” e, creio também, os “zungueiros”; e porque, em jogada de antecipação, e com o claro objectivo de frustrar essa intenção, o Governador Provincial de Luanda resolveu convocar para o Pavilhão da Cidadela, um encontro com o mesmo público-alvo, precisamente para o dia anterior ao da realização da manifestação.

 
  1. No Sábado, dia 15, desde muito cedo, era já bem visível um forte aparato policial nas cercanias do Largo 1º de Maio, e o próprio Largo encontrava-se literalmente envolvido por uma cerca metálica, ali posta para impedir que fosse utilizado como palco de protestos.


  1. Na nossa cidade, generalizou-se o uso da expressão “zungueiro”, quer para os vendedores ambulantes, quer para aqueles que se colocam num qualquer local fixo para proceder às suas vendas, desde que não seja nos chamados mercados formais, sob responsabilidade municipal.

 
  1. No momento da repressão, são, por norma, todos tratados da mesma forma, vendedores ambulantes e vendedores em locais fixos, desde que não devidamente autorizados: à paulada, sob uma chuva de porretes, por vezes, são mesmo varridos por bala real. Tal como também se reprimem outros tipos de manifestações, desde que não sejam de louvor e apoio às entidades oficiais.

 
  1. A história recente da nossa cidade regista inúmeros casos de vendedores e de vendedoras maltratados, feridos, ou até mesmo mortos por fiscais e polícias em acções de repressão que bradam aos céus.


  1. O triste episódio que vitimou o Secretário Geral do Bloco Democrático, o Dr. Filomeno Vieira Lopes, quando circulava no espaço contíguo ao Hospital Militar, é apenas mais um exemplo do modo violento como se tratam os cidadãos que ousam sair à rua em protesto.

 
  1. A intolerância política e o não respeito pela diferença, foram há cerca de 2 anos acrescidos com a morte, em circunstâncias escabrosas, de dois activistas – por sinal, os ex-militares Isaías Cassule e Alves Kamulingue – de que ainda se espera o descobrimento de toda a verdade e o pronunciamento final da justiça.


  1. Desta vez, optou-se por alterar a forma de actuação: não mais o rapto, agressão e desaparecimento temporário (ou definitivo) dos organizadores das manifestações, mas, sim, o exercício de uma jogada política de antecipação. O que faz com que nem mesmo o esforço abnegado de certos intelectuais que tudo fazem para “polir” a já desgastada imagem pública de algumas instituições e individualidades consiga disfarçar o arreigado apego à intolerância.

 
  1.  Desta vez, porém, tivemos a possibilidade de ouvir da mesma boca que antes ameaçava tudo e todos com o recurso à violência e repressão, um discurso “moderado”. Só que essa repentina “moderação” foi manchada pelo cerco e gradeamento metálico do Largo 1ª de Maio. A mensagem estava, pois, passada: manifestações, nunca! A não ser que sejam de glorificação e louvor aos actos heróicos de quem manda!

 
  1. No encontro da Cidadela, o Governador de Luanda anunciou aos ambulantes que o “Camarada Presidente” o havia instruído para punir os fiscais e polícias que perseguem, agridem, torturam e violentam os ambulantes. E disse-o como se tivesse acabado, finalmente, de descobrir “a fórmula do carburex…”.


  1. Espanta-me, antes de mais, que tenha sido necessário o “Camarada Presidente” dar tal instrução ao “Camarada Governador”, quando há muito a sociedade vem clamando pelo fim da brutalidade exercida por certos agentes de autoridade que se esforçam por imitar os “Tom-Tom Macoute” dos tempos do “Papá Doc” no Haiti.

 
  1. Será que as autoridades locais não têm capacidade de discernimento para elas próprias perceberem que a solução para o problema da venda ambulante não passa pelo espancamento, e até, não poucas vezes, a morte das “zungueiras” e dos “zungueiros”?

 
  1. Como é habitual, e para não variar, lá veio de novo a invocação do nome do “Camarada Presidente” para a resolução de um problema que não apresenta qualquer complexidade…


  1. Maltratar gratuitamente o povo – como fazem os fiscais e alguns policias – não é, certamente, desconhecido pelos nossos dirigentes locais e centrais. Nem é nenhum acto heróico – É crime!

 
  1. Qualquer dirigente que se preze, no âmbito das suas responsabilidades, tem a obrigação de tomar as devidas medidas adequadas, para impedir que o crime se consuma e se repita, sem que, antecipadamente, tenha que ser “assoprado” pelo “Camarada Presidente”. Neste jogo de “assopradelas”, penso que alguém ocupa um lugar errado: presumo que seja o “assoprado”, pois demonstra dificuldade em perceber qual é o seu nível de responsabilidades…

 
  1.  E fico ainda mais confuso, quando ouço dizer que o “Camarada Presidente” orientou o “assoprado” para fazer uma “oferta” de dinheiro – cinco mil kwanzas – a cada “zungueira” presente no encontro, como forma de compensação pelo dia de trabalho perdido no encontro do Pavilhão da Cidadela…

 
  1.  Se é verdade, como se disse, que, no Pavilhão da Cidadela, estiveram presentes cerca de 12.000 pessoas, então, é fácil fazer a conta. A “oferta do Camarada Presidente” ronda o equivalente a 600.000 dólares. Não é justo agora eu perguntar ao “assoprado”, de que Orçamento saiu, afinal, este dinheiro, assim tão generosamente distribuído? Terá saído do Orçamento da Província? Terá saído de um “bolo” desconhecido, superiormente gerido?

 
  1. Será ainda que depois daquela estafa da reunião, as “zungueiras”, ainda tiveram que fazer uma bicha interminável, para receberem o kumbú? Ou foi-lhes indicado um Banco onde poderão levantar a “massa”? Ou tiveram que ir a um qualquer CAP onde, no momento da entrega da “bala”, receberam o seu cartão de membro? Enfim, é que certos “assopros”, por vezes, acarretam fenómenos inesperados…

quinta-feira, 13 de março de 2014

A MINHA FAMÍLIA PERDEU O SEU PATRIARCA


  1. Na Antiguidade, a expressão “Patriarca” reportava-se ao Chefe de uma Família ou de uma Tribo. É assim que, por exemplo, foi realçado o papel de Abraão, de Isaac e de Jacob na formação da Nação Judaica. São, ainda hoje, assim referenciados os Chefes das Igrejas Cristãs do Oriente, da Igreja Ortodoxa Grega, etc. O Patriarca é, pois, uma figura referencial e reverenciada.


  1. Em muitas famílias angolanas, sobretudo, nas mais tradicionais, há quase sempre alguém que assume um papel preponderante, colocando-se numa posição de merecido respeito e consideração. Pela conjugação de um conjunto de circunstâncias, dá-se-lhe, pois, uma maior atenção, ouvem-se mais atentamente os seus conselhos e as suas considerações.

 
  1. Na verdade, para nós, o Patriarca é um líder informal, alguém que é investido de um poder de influência não suportado em qualquer lei ou dispositivo normativa. O Patriarca é um símbolo de unidade e torna-se, por isso, o garante da continuidade dos valores, princípios e regras prevalecentes dentro da família.


  1. Entre os Pinto de Andrade (numa perspectiva extensa), atribuímos esse título honorífico à pessoa de Bento Falcão Pinto de Andrade – sempre tratado com enorme respeito e carinho: para uns, o “Mano Bentinho”; para outros, o “Tio Bentinho”; ou o “Primo Bentinho”; ou ainda o “Avô Bentinho”.

 
  1. O meu “Primo Bentinho” – agora falecido – impôs-se perante todos nós, pelo modo peculiar como aliou a sabedoria e a inteligência à elegância e à finura no trato. Ele concentrou uma dose elevada dessas características que se disseminavam, ainda, pelos restantes irmãos e irmãs. De todos os irmãos, o “Primo Bentinho” – irmão do Mário Pinto de Andrade e do Joaquim Pinto de Andrade, para só falar destes dois mais destacados – foi o que teve uma vida menos atribulada.

 
  1. O Mário e o Joaquim seguiram rumos talvez mais complicados. Coube aos dois irem estudar para a Europa. Depois, seguiu-se um longo exílio – no caso do Mário – e as sucessivas prisões do Joaquim. Pelo seu percurso de vida, tornaram-se verdadeiros esteios do nacionalismo angolano moderno.

 

  1. O Bento Falcão, o Joaquim e o Mário eram filhos do meu tio José Cristino Pinto de Andrade, homem grande da sua época e um dos fundadores da Liga Nacional Africana, em 1930.

 

  1. Na minha família, o associativismo – seja de carácter cívico ou político – quase posso dizer que tem carácter genético, e tornou-se mesmo indissociável da nossa existência. Ele impulsiona-nos e dificilmente sucumbe perante circunstâncias adversas.

 

  1. O meu tio José Cristino Pinto de Andrade fundou a Liga Nacional Africana juntamente com Gervásio Ferreira Viana – pai do Gentil Viana – Manuel Inácio Torres Vieira Dias, Sebastião José da Costa, António de Assis Júnior, José Vieira Dias, Fernando Torres Vieira Dias, Lucrécio Africano de Carvalho e Aurélio Neves. Está aqui,, pois, um ilustre “naipe” de figuras grandes da nossa sociedade, merecidamente consagrados como precursores do nacionalismo angolano moderno.

 

  1. Esses fundadores da Liga Nacional Africana tinham, ainda, uma forte vocação pan-africanista, ao pretenderem unir num mesmo laço cultural, desportivo e recreativo os distintos africanos do Cairo ao Cabo. Isso pode explicar a designação que escolheram para a sua agremiação: Liga Nacional Africana. Afinal, o prenúncio de uma ideia de Unidade Africana.

 

  1. O meu primo Bento Falcão Pinto de Andrade, agora falecido, e os seus irmãos – o Mário e o Joaquim – acompanharam o germinar da semente associativista e proto-nacionalista lançada por aquela geração de homens grandes e que inspirou também outros homens grandes da nossa história moderna, como Viriato da Cruz, Lúcio Lara, Hugo de Menezes, Eduardo Macedo dos Santos, Agostinho Neto.

 

  1. Todos aqueles “Mais Velhos”, mais estes últimos, e as gerações que se lhes seguiram, entre as quais a minha, partimos de exercícios de afirmação da nossa identidade cultural para formas mais avançadas de luta, na busca do caminho que nos conduziria à completa autodeterminação.

 

  1. Aprendi com a minha mãe, que os ilustres antepassados da geração do Mário e do Viriato cultivavam, sobretudo, o gosto pela leitura, pelo saber, mas tinham, também, forte apego ao debate epistolar. Foram cultores dessa forma original de debate contraditório de ideias, ao seu tempo, um expediente para o aperfeiçoamento da sua cultura democrática.

 

  1. O meu “Primo Bentinho”, o Bento Falcão Pinto de Andrade, sempre nos manifestou a sua elevada estima pelo meu pai e seu tio, Justino Pinto de Andrade, a quem atribuía a maior responsabilidade no seu tirocínio democrático. E fazia-o nos seguintes termos: “Não foi nos livros que eu aprendi os fundamentos da Democracia. Foi com o meu Tio Justino!”. Uma frase que nos enchia de orgulho, nós que perdemos o nosso pai muito prematuramente.

 

  1. O debate democrático morou entre as nossas antigas elites culturais, ao ponto de, em 1948, Viriato da Cruz ter caracterizado da seguinte forma os objectivos do movimento cultural, o “Vamos Descobrir Angola”, de que se tornou o mais lídimo representante: “Queremos reavivar o espírito combatente dos escritores do fim do século XIX, de Fontes [José Fontes Pereira] e dos homens que compuseram “A Voz de Angola Clamando no Deserto”.

 

  1. Pena, sim, que os projectos totalitários que se seguiram tenham quebrado essa linha de intervenção cívica e política dos nossos antepassados. Mas, agora, a Nação já se vai, felizmente, renovando, vai saindo, aos poucos, da nova “noite grávida de punhais” – como caracterizou Mário Pinto de Andrade os últimos anos do período colonial – sobretudo pelo esforço e abnegação de uns poucos temerários que um dia a história consagrará…

 

  1. Com o desaparecimento físico do meu “Primo Bentinho” quase que dou por expirada uma linhagem de gente de boa cepa que inspirou os meus passos… Sou-lhes muito grato pelo que hoje sou.

 

  1. Aos 96 anos, o nosso Patriarca sucumbiu perante a força invencível da morte. Durante algum tempo, estaremos nós quase sem rumo… Até que se afirme um novo Patriarca…

segunda-feira, 10 de março de 2014

HENRIQUE GUERRA E “O TOCADOR DE QUISSANJE”


1.    Henrique Lopes Guerra nasceu em Luanda, em 1937, filho de Francisco Lopes Guerra e da minha tia Merciana Pinto de Andrade. Formou-se em Engenharia Civil e foi professor na Universidade Agostinho Neto, entre os anos 1978 e 1982. Trabalhou na SONEFE e, posteriormente, até 2009, no GAMEK (Gabinete de Aproveitamento do Médio Kwanza), nas fases de estudo, construção e entrada em funcionamento da Barragem de Capanda.

 

2.    Inicialmente, os jornais e as revistas foram os espaços aproveitados pelos escritores angolanos (também, os das restantes colónias portuguesas), para exporem os seus talentos e as suas ideias. Foi, assim, com o benguelense José da Silva Maia Ferreira, ao publicar na “África Lusófona”, em 1849, “Espontaneidades da minha alma – As senhoras africanas”, aquele que é por muitos considerado o primeiro livro de poemas de um escritor angolano.

 

3.    Segundo os estudiosos da matéria, a então incipiente literatura angolana é mais ou menos coincidente com a emergência de uma burguesia angolana resultante do desenvolvimento de uma nova economia, já não mais baseada no tráfico de escravos para o Brasil – que começou a ser bastante reduzido a partir de 1836 – mas, sim, em outras actividades económicas, fundamentalmente, na agricultura e no comércio.

 

4.    Foi assim, também, com o jornalista, escritor e advogado de origem portuguesa, Alfredo Trony, ilustre criador da novela “Nga Mutúri”, hoje justamente tido como um dos precursores da literatura angolana, pela forma rigorosa como retratou aquela época da vida de Luanda.

 

5.    Alfredo Trony viveu muitos anos em Luanda, onde faleceu em 1904. Fundou em Luanda o periódico “Jornal de Luanda”, em 1878, também o “Mukuarimi”, em 1888, e, segundo se diz, terá também fundado o periódico “Conselhos do Leste”, em 1891.

 

6.    Foi ainda assim, com o também jornalista Pedro Félix Machado – cultor da prosa de ficção – ao publicar em folhetim, na “Gazeta de Portugal”, a primeira edição da sua novela “Scenas d’África”, reeditado em 1882. Será dele, igualmente, o livro de sonetos “Sorrisos e Desalentos”, entre outros escritos.

 

7.    A instalação do prelo em Angola data de 1845, com o surgimento do Boletim Oficial – 400 anos após a invenção da impressão gráfica por Gutemberg. Esse foi o ponto de partida para o aparecimento de outras publicações periódicas, inicialmente mais frequentadas pelas elites europeias instaladas em Angola, que os utilizavam para defenderem os seus interesses nem sempre coincidentes com os da Metrópole.

 

8.    Alguns africanos participaram também nesses periódicos, sem, contudo, que eles perdessem a sua característica essencial: a defesa dos interesses económicos e administrativos da Colónia, a luta contra a escravatura e contra as arbitrariedades praticadas por algumas das autoridades.

 

9.    Alguns dos primeiros periodistas africanos tiveram o cuidado de escrever também em Kimbundu, dando assim um outro tom ao periodismo angolano. Que se saiba, o primeiro periódico editado por africanos foi o “Hecho de Angola”, em 1881. Seguiram-se outros, como “O Futuro de Angola”, de 1882; “O Farol do Povo”, de 1883; “O Arauto Africano”, de 1889; “O Serão”, de 1886; “O Desastre”, de 1889. E outros.

 

10.                      Foi no “O Farol do Povo” e no “O Arauto Africano” que se destacou o prolixo e muito polivalente intelectual angolano, natural do Icolo e Bengo, Cordeiro da Matta, autor do primeiro dicionário de kimbundu, “Ensaio de Dicionário de Escrita” – língua de que era exímio cultor.

 

11.                      Henrique Guerra não escapou a essa tradição vinda do século XIX, dispersando, também ele, escritos por revistas e por jornais. Foi assim que, entre 1956 e 1963, HG escreveu na revista “Cultura”, editada pela “Sociedade Cultural de Angola”; no boletim “Mensagem”, editado pela “Casa dos Estudantes do Império”; no “Jornal de Angola”, editado pela “Associação dos Naturais de Angola”; e no vespertino luandense, “ABC”, seguramente, do ambiente colonial, o mais independente de todos quantos circulavam na época. Também publicou no boletim “Angola”, da “Liga Nacional Africana”, já em 1974, assim como na gazeta “Lavra & Oficina”, da “União dos Escritores Angolanos”.

 

12.                      Muitos dos escritos de HG passaram a figurar em diversas antologias, como “Na Noite Grávida de Punhais – Antologia temática de poesia africana”, compilada por Mário Pinto de Andrade; na “Literatura africana de expressão portuguesa”, de 1970, também compilada por Mário Pinto de Andrade; “No Reino de Caliban – antologia panorâmica da literatura africana de expressão portuguesa”, compilada pelo Professor Manuel Ferreira; em “Poesia de Angola”, compilada pela Professora Irene Guerra Marques. Ainda, entre outras, na recente antologia compilada por Adriano Botelho de Vasconcelos, com o título “Todos os sonhos – antologia de poesia moderna angolana”.

 

13.                      A obra de António de Assis Júnior, “O Segredo da Morta” é um marco histórico-literário da ficção angolana. Foi publicada em 1929, em folhetins, no jornal “A Vanguarda de Luanda”, e reeditada em 1935, pela tipografia “A Lusitana”. Henrique Guerra teve a oportunidade de prefaciar a última reedição dessa obra de Assis Júnior, dada à estampa pela União dos Escritores Angolanos. Nesse Prefácio, HG designa o período literário que vai de 1910 a 1940, como um período de “quase não-literatura”, tal o vazio que então se instalou na produção literária angolana.

 

14.                      Tento, por vezes, perceber o porquê desse vazio que se instalou na produção literária angolana: a violência que acompanhou o período da ocupação militar do território angolano por parte dos portugueses; a 1ª Guerra Mundial; o período entre as duas Guerras Mundiais e, sobretudo, a germinação do fascismo, com toda a sua intolerância.

 

15.                      A partir de 1940, a produção literária angolano ganhou novo impulso com o surgimento de mais revistas, graças também ao protagonismo de dois grupos referenciais: o chamado “Movimento dos Jovens Intelectuais” e os autores que tiveram como Lema “Vamos descobrir Angola”.

 

16.                      Porquê, então, esse reacender da veia literária em Angola? Talvez fruto do novo tipo de imigração que o fascismo produziu, com a deportação para Angola de muitos dos que se lhe opunham em Portugal; também pela emergência dos ideais de justiça e liberdade que se seguiram ao desenvolvimento dos processos de autodeterminação dos povos asiáticos e caribenhos que impactaram sobre as nossas jovens elites intelectuais.

 

17.                      Em 1950, aparece no quadro intelectual angolano a “Antologia dos novos poetas de Angola”, seguindo-se a revista “Mensagem”, de efémera duração (1951/1952). Mesmo assim, aqui despontam figuras como Agostinho Neto, Alda Lara, António Jacinto, António Cardoso, Antero Abreu, Mário António Fernandes de Oliveira, Mário de Andrade, Viriato da Cruz, Óscar Ribas.

 

18.                      Vem, depois, a revista “Cultura II” (1957/1961), participada por alguns elementos da “Mensagem” e por outros intelectuais apostados numa estratégia conducente à definição de uma verdadeira identidade nacional. Agrupam-se aí, de novo, Agostinho Neto, Óscar Ribas, Antero Abreu, mas, também, Mário Guerra, Henrique Guerra, Carlos Ervedosa, Costa Andrade, Luandino Vieira, e outros.

 

19.                      Em 1962, sendo ainda Alferes Miliciano, Henrique Guerra publicou na então “Colecção Imbondeiro”, um livro de contos sob o título “A Cubata Solitária”. Depois, seguiu-se um longo período de oito anos e meio de prisão, nas cadeias portuguesas de Aljube, Caxias e Peniche, de onde só saiu em 1973.

 

20.                      Por altura da Independência, em 1975, publicou o ensaio “Angola – Estrutura Económica e Classes Sociais”. No ano seguinte, deu à estampa “Quando me Acontece Poesia”; em 1977, “Alguns Poemas”, nos Cadernos “Lavra & Oficina”, da UEA; em 1979, sai da sua pena a peça de teatro “O Círculo de Giz de Bombô”; fez ainda sair, em verso e prosa, em 1982, baseando-se na tradição oral, a obra “Três Histórias Populares”. Henrique Guerra é autor de diversos estudos sobre Literatura Angolana do séc. XIX.

 

21.                      Em 1979, o Professor Manuel Ferreira publicou uma obra intitulada “África: Literatura. Arte. Cultura”, onde inseriu dois capítulos de um texto inédito de Henrique Guerra, escrito em 1961, intitulado “Lípu – Kua – Púkua”.

 

22.                      O seu ensaio sobre a economia da Angola nos últimos anos da ocupação portuguesa, “Angola – Estrutura Económica e Classes Sociais “, foi escrito no período em que estava na cadeia, em Portugal (1964/1973), e é frequentemente referido com uma obra essencial para a compreensão do fenómeno económico e social daquela época.

 

23.                      Henrique Guerra tem sido um associativista por natureza. Ele participou na fundação da União dos Escritores Angolanos, onde exerceu o cargo de Secretário para as Actividades Culturais. Participou, igualmente, na fundação da União Nacional dos Artistas Plásticos de Angola (UNAP), de que foi Presidente da Direcção em duas Comissões Directivas (1984 e 1988). Como artista plástico ganhou dois prémios de desenho e pintura (1955 e 1958) e foi Secretário-Geral da Associação Bantu dos Artistas Plásticos (1985).

 

24.                      Em 2013, o escritor Henrique Guerra foi distinguido pelo Ministério da Cultura de Angola com um Diploma de Mérito, pelo seu contributo para a valorização da literatura angolana desde a “Geração da Mensagem”, e pelo seu trabalho de investigação no campo da literatura tradicional e o seu envolvimento em outros domínios da cultura nacional. A Ministra da Cultura, Rosa Cruz e Silva, fez questão de reconhecer a dívida que até então persistia para com Henrique Lopes Guerra.

 

25.                      A presente obra de Henrique Guerra, “O Tocador de Quissanje” é um conjunto de 6 contos, escolhidos de um caderno escrito no início dos anos sessenta e guardado durante décadas pelo seu amigo, Cândido da Velha. São vivências tiradas dentro de si, e que o autor publica pela primeira vez. São, pois, inéditos.

 

26.                      Ele também nos diz que, daquele caderno, escolheu alguns escritos, fez a sua revisão e publica-os agora, não como uma visão crítica da época colonial, mas como um marco do seu percurso que o transformou naquilo que ele é.

 

27.                      Digo eu, agora: o Henrique Guerra tem a obrigação histórica e intelectual de rever e publicar os restantes escritos que foram retirados do fundo do baú do seu amigo. Com estes hoje apresentados e com os restantes, a literatura angolana ficará, seguramente, mais enriquecida, tal é a valia da sua narrativa.

 

28.                       Transcrevo aqui um extracto do rico Prefácio desta obra, escrito pela Irene Guerra Marques e que vem destacado na contracapa:

 

O Tocador de Quissanje, obra que engloba um conjunto de seis contos, constitui uma galeria de quadros sugestivos, onde a realidade colonial angolana, com todos os seus contrastes e contradições se vai vislumbrando, descobrindo, transportando-nos quase para universos cinematográficos, sonhados em sequências feitas de planos milimetricamente enquadrados, onde paletas de cores se misturam com sons e pautas de músicas, subtilmente montados, ora por elipses, ora encadeados”.

 

29.                      No seu conto, “Josefo Camalata”, HG retrata um dos aspectos que acompanhou o processo de expansão dos povos ovimbundu cada vez mais para o sul do nosso território, praticando, inclusive, o roubo do gado dos povos oxikwanyama e mumwila. Esse foi não só um profundo fenómeno económico, mas, também, um não menos importante fenómeno de miscigenação cultural, de onde não escapa, naturalmente, o contributo dos portugueses. O exemplo mais emblemático é a figura de Josefo Camalata, como diz, a propósito, Irene Guerra Marques: “… um mulato situado entre dois mundos e várias culturas: a kwanyama, a ovimbundu e a portuguesa, o que lhe permite posicionar-se numas e noutras sem quaisquer constrangimentos.”

 

30.                      Mas a obra de HG contém ainda o “Mulengue”, que pinta o processo de transformação de um local da sua infância e juventude, ainda com grandes quintalões de aduelas e as suas ruas de barro vermelho, onde existiu o Musseque Braga e surgiu o Bairro do Café – este já um produto do surgimento de uma nova fonte de riqueza, com o afastamento cada vez mais acelerado das famílias africanas, remetidas para as periferias da cidade. Nandinho é a expressão desse processo de exclusão social, vendo cada vez mais limitados os seus passos.

 

31.                      Adorei ler “A Caçada”. É escrito por HG quase que misturando a sua sensibilidade de escritor com a de artista plástico. “… Inesperadamente, vinda dos lados da mata, uma queimada começou a lamber a terra, avançando rapidamente em nossa direcção, como um grande rolo compressor.” HG posiciona-se neste conto como narrador e protagonista, retratando uma das suas vivências, ainda jovem, como topógrafo, numa das suas actividades no interior do país.

 

32.                      No Prefácio, Irene Guerra Marques assinala: “De repente, no mural, descubro duas imagens distintas, mas de grande intensidade: a grande palanca “que num salto magnífico eleva-se no ar, ultrapassa as redes e ganha a liberdade” e o exército fantasma de “”mulheres velhas e carcomidas, que sofregamente começam a cavar buracos, buscando os seus manjares (…) ratos mortos, tributo que a vida concedia à sua miserável condição de velhas””.

 

33.                      O livro começa com o curto conto que lhe deu o título: “O Tocador de Quissanje”. Neste conto, sobressai, em prosa, a alma poética do autor, pintando, em letras de múltiplas cores, o lindo quadro do feliz encontro entre o transe melódico do tocador de quissanje e a natureza no seu percurso de lutas sem fim.

 

34.                      Finalmente, o “Kurika”, onde intervêm também a figura da Elisa e do Quinino, num triângulo de disputa amorosa que não termina como geralmente acontece… Nem o Kurika, nem o Quinino… Nesse conto, novamente, HG traça-nos um pouco da sua vivência, vislumbrando por detrás de um cenário de múltiplas emoções, não apenas a enorme mobilidade dos povos e culturas, mas, também, as sementes da revolta que estavam latentes na região da Baixa de Cassanje.

CONFLITOS MODERNOS COM RAÍZES ANCESTRAIS


1.  Nos últimos dias, as atenções mundiais viraram-se para a Ucrânia, tendo-se logo de seguida centrado mais na disputa feroz que opõe, na Península da Crimeia, as novas autoridades ucranianas ao poder instalado na Rússia.


2.  Com isso, relegou-se para um plano secundário quer os desenvolvimentos da guerra na Síria, o impasse nas conversações tendentes a pôr termo ao conflito israelo-palestiniano, ou mesmo a degradação da situação em determinados países africanos, com maior acento na República Centro-Africana. A Ucrânia e a Crimeia concentram sobre si todos os holofotes. E é deles que aqui e agora me proponho abordar.

 
3.  Fisicamente, a Península da Crimeia é uma continuação do território da Ucrânia, a quem se liga pelo chamado Istmo de Perekop. Está estrategicamente localizada no Mar Negro, dando, pelo Estreito de Kerch, igualmente acesso Mar de Azov. Pelo Estreito de Kerch tem-se acesso à Península de Taman, esta já em território russo.

 
4.  O contacto com a história remota – e mesmo a história mais recente da Península da Crimeia – mostra-nos o quanto ela tem sido importante na geo-estratégia daquela parte do mundo, muito próxima do Mediterrâneo. A Península da Crimeia foi disputada por gregos, romanos, pelo Império Bizantino, pelos Mongóis, pelos russos, também pelas principais potências europeias. A história da Península da Crimeia está, por isso, demasiado marcada por invasões, por anexações, desanexações e, para cúmulo, por deportações massivas de partes das suas populações.

 
5.  Essa mistura de dramas tem uma grande quota de responsabilidade no actual quadro demográfico da Península da Crimeia, onde coabitam populações etnicamente identificadas com a Rússia, com a Ucrânia, com a Bielo-Rússia, com a Turquia, com a Arménia.


6.  Em 1944, Joseph Stalin promoveu a deportação em massa da população tártara de Crimeia, estimando-se que apenas metade deles tenha sobrevivido às agruras que lhe foram impostas. Em contrapartida, Stalin estimulou o povoamento do território da Crimeia por cidadãos russos. Os tártaros só puderam regressar após a queda do Império Soviético – ficando, assim, em minoria face aos russos.


7.  Até 1954, a Crimeia esteve anexada à República Socialista Soviética da Rússia, altura em que foi devolvida à República Socialista Soviética da Ucrânia, por determinação de Khruschov.


8.  O Fim da União Soviética permitiu que a Crimeia se assumisse inicialmente como um República independente, optando, de seguida, por se tornar uma região semi-autónoma dentro da Ucrânia, com o seu próprio corpo legislativo, um poder executivo, com a justiça, porém, a depender directamente do poder central ucraniano.


9.  A presença da Frota Russa do Mar Negro em Sebastopol, aliada à enorme percentagem de cidadãos etnicamente russos, condiciona o actual quadro político-militar na Península da Crimeia, tornando-o favorável aos actuais interesses de Putin e do poder que ele representa.


10.                  Mas a importância da Ucrânia e da Crimeia para a Rússia não decorre apenas da vertente militar e étnica. Ela advém, igualmente, do facto de ser uma zona de enorme potencial para a produção de bens alimentares, ser a Crimeia um pólo de desenvolvimento turístico excepcional – pelas condições climáticas que possui – sendo ainda a Ucrânia uma passagem obrigatória para boa parte do gás natural que a Rússia fornece à Europa Ocidental.


11.                  Devo realçar o facto de o actual confronto prevalecente naquela região ser ainda a manifestação de um conflito marcadamente político-ideológico, opondo os anseios de uma boa parte da população ucraniana – especialmente a que vive na parte ocidental do território – que se identifica com o modelo político democrático, enquanto que as populações etnicamente russas estão ideologicamente mais identificadas com o modelo autoritário que vigora na Rússia em muitas das antigas Repúblicas Soviéticas.

 
12.                  Há, pois, na análise da questão ucraniana e, também, no caso específico da Península da Crimeia, que atender às diversas dimensões desse complexo problema, onde ainda pairam vestígios da história misturados com interesses militares e económicos presentes, sem menosprezar as opções ideológicas e politicas das populações.

ALGUNS FLAXES DE MEMÓRIA


  1. Aproxima-se a data comemorativa dos 40 anos do “25 de Abril em Portugal”, etapa histórica que marcou uma viragem democrática na vida daquele país irmão e que se tornou, igualmente, referencial para os povos das suas antigas colónias.

  1. Por norma, quando caminhamos para esse dia, aproveito fazer um pequeno “replay” à minha memória, revelando recordações que marcaram a minha vida e ajudaram a moldar a personalidade que hoje tenho.

  1. Ao contrário do que acontece com algumas pessoas que conheço, a lembrança das situações menos boas que vivi não me inspira algum ódio ou vontade de “revanche”. Os maus momentos da vida funcionam como que estações de rápida passagem… Fazem-me apenas recordar factos marcantes e revisitar pessoas com quem convivi e com quem irmanei causas e objectivos.

  1. Esta manhã, vivi mais um desses dias em que reavivei a memória. Fui estimulado pela entrevista que concedi a uma estação de rádio portuguesa, na preparação de um trabalho de fundo, em homenagem aos 40 anos do “25 de Abril em Portugal”.

  1. Entre outras questões, quem me entrevistou quis saber das motivações subjectivas que estiveram na base da minha precoce tomada de posição contra o colonialismo português.

  1. Saltou à minha memória, e de imediato, a imagem dos primeiros contactos negativos com as autoridades portuguesas – ia eu ainda nos verdes 13 anos de idade:

i)                   A invasão da minha casa pela tropa portuguesa, sob suspeita de termos escondido ditos “terroristas”;

ii)                Uma rusga em que fui levado para a concentração no quintalão do Hospital de São Paulo, e misturado com outros “suspeitos”;

iii)              Um tenebroso espectáculo a que assisti – o abate a tiro de um cidadão que, inadvertidamente, desobedeceu a uma ordem de paragem dada pelos cipaios dos portugueses (força repressiva auxiliar constituída por africanos);

iv)              Outras rusgas indiscriminadas, bem junto à minha casa, com os homens rusgados colocados em posição incómoda e humilhante;

v)                O assalto à Cadeia de São Paulo protagonizado pelos nacionalistas do dia “4 de Fevereiro”;

vi)              O assassinato do meu tio Carlos Costa – irmão mais novo da minha mãe – às mãos de alguns portugueses. O meu tio Carlos trabalhava na Igreja dos Remédios com o Cónego Manuel das Neves. Pode ter sido uma consequência…

 

  1. A isso juntaram-se à minha memória outros factos memoráveis dessa época:

 

i)                   O ambiente social e político – muitas vezes disfarçado de cultural – que fui acompanhando na companhia da minha mãe, por exemplo, aquando da campanha eleitoral de 1958 com a figura empolgante do General Humberto Delgado a desafiar Salazar e o seu regime;

ii)                As prisões políticas que se celebrizaram com o nome de “Processo de 50”;

iii)              A prisão e deportação do Dr. Agostinho Neto e do Padre Dr. Joaquim Pinto de Andrade;

iv)              A prisão dos também meus primos Mário Guerra e Pedro Trindade Aleixo da Palma;

v)                Os relatos sobre o “Massacre da Baixa de Cassanje”.

 

  1. Todo esse conjunto de factos constituiu o berço que embalou a minha consciência cívica, política e nacionalista. Na realidade, sou uma testemunha viva de um dos períodos mais emocionantes dessa parte da nossa história. Não foi, pois, por um mero acaso que, poucos anos depois desses acontecimentos, já me encontrava a conspirar, de um modo organizado, contra a presença colonial.

  1. De modo algum, sou o fruto de um qualquer impulso momentâneo, nem o reflexo de uma opção eventualmente irreflectida. O meu posicionamento face à circunstância histórica e o percurso que se seguiu decorreu, naturalmente, sem sobressaltos nem precipitações – mesmo que me tenha tornado um actor demasiado precoce.

  1. Quem me entrevistou procurava o testemunho de um protagonista africano, para ilustrar o seu trabalho sobre o papel da PIDE, a polícia política portuguesa que se extinguiu com a queda crepitosa do regime fascista e colonialista de Salazar e Caetano. Penso que lhe facilitei a tarefa, rememorando esses e outros factos, sem emoções e sempre pautado pelo equilíbrio e pela necessidade de fazer justiça histórica. Revelei-lhe outros episódios que vivi, quer na Cadeia de São Paulo, quer também no Tarrafal.

  1. À sua pergunta do porquê de eu não evidenciar qualquer sentimento de ódio para com aqueles que me prenderam, respondi ser-me muito fácil não alimentar ódio dentro de mim. Encarei a luta política como um jogo onde todos os actores desempenham o seu papel, cada um defendendo aquilo em que acredita.

  1. Eu sempre acreditei nos valores da liberdade e da justiça. Os colonialistas e os fascistas acreditavam nas suas regras, nos seus valores e princípios, que eram diametralmente opostos aos meus. No final de todo aquele drama – mesmo que com algumas mazelas na minha saúde – eu saí vencedor, juntamente com todos os que comungaram as minhas causas.

  1. O trabalho jornalístico de que me tornei acidentalmente parte, terá por título “No Limite da Dor…”. E isso motivou a minha entrevistadora a culminar a reportagem querendo saber o seguinte: “Afinal, que dor eu guardava ainda dentro de mim?”.

A resposta saiu-me fácil e rápida: “A dor pelo facto de muitos daqueles que partilharam comigo o mesmo sonho, e que saíram vivos da cadeia, não terem tido essa mesma ventura, quando fomos novamente encarcerados…”. É evidente que esse é já um outro episódio, fora dos limites da memória da PIDE. Trata-se, afinal, de uma dor com outros contornos, e com outros actores…