quinta-feira, 13 de março de 2014

A MINHA FAMÍLIA PERDEU O SEU PATRIARCA


  1. Na Antiguidade, a expressão “Patriarca” reportava-se ao Chefe de uma Família ou de uma Tribo. É assim que, por exemplo, foi realçado o papel de Abraão, de Isaac e de Jacob na formação da Nação Judaica. São, ainda hoje, assim referenciados os Chefes das Igrejas Cristãs do Oriente, da Igreja Ortodoxa Grega, etc. O Patriarca é, pois, uma figura referencial e reverenciada.


  1. Em muitas famílias angolanas, sobretudo, nas mais tradicionais, há quase sempre alguém que assume um papel preponderante, colocando-se numa posição de merecido respeito e consideração. Pela conjugação de um conjunto de circunstâncias, dá-se-lhe, pois, uma maior atenção, ouvem-se mais atentamente os seus conselhos e as suas considerações.

 
  1. Na verdade, para nós, o Patriarca é um líder informal, alguém que é investido de um poder de influência não suportado em qualquer lei ou dispositivo normativa. O Patriarca é um símbolo de unidade e torna-se, por isso, o garante da continuidade dos valores, princípios e regras prevalecentes dentro da família.


  1. Entre os Pinto de Andrade (numa perspectiva extensa), atribuímos esse título honorífico à pessoa de Bento Falcão Pinto de Andrade – sempre tratado com enorme respeito e carinho: para uns, o “Mano Bentinho”; para outros, o “Tio Bentinho”; ou o “Primo Bentinho”; ou ainda o “Avô Bentinho”.

 
  1. O meu “Primo Bentinho” – agora falecido – impôs-se perante todos nós, pelo modo peculiar como aliou a sabedoria e a inteligência à elegância e à finura no trato. Ele concentrou uma dose elevada dessas características que se disseminavam, ainda, pelos restantes irmãos e irmãs. De todos os irmãos, o “Primo Bentinho” – irmão do Mário Pinto de Andrade e do Joaquim Pinto de Andrade, para só falar destes dois mais destacados – foi o que teve uma vida menos atribulada.

 
  1. O Mário e o Joaquim seguiram rumos talvez mais complicados. Coube aos dois irem estudar para a Europa. Depois, seguiu-se um longo exílio – no caso do Mário – e as sucessivas prisões do Joaquim. Pelo seu percurso de vida, tornaram-se verdadeiros esteios do nacionalismo angolano moderno.

 

  1. O Bento Falcão, o Joaquim e o Mário eram filhos do meu tio José Cristino Pinto de Andrade, homem grande da sua época e um dos fundadores da Liga Nacional Africana, em 1930.

 

  1. Na minha família, o associativismo – seja de carácter cívico ou político – quase posso dizer que tem carácter genético, e tornou-se mesmo indissociável da nossa existência. Ele impulsiona-nos e dificilmente sucumbe perante circunstâncias adversas.

 

  1. O meu tio José Cristino Pinto de Andrade fundou a Liga Nacional Africana juntamente com Gervásio Ferreira Viana – pai do Gentil Viana – Manuel Inácio Torres Vieira Dias, Sebastião José da Costa, António de Assis Júnior, José Vieira Dias, Fernando Torres Vieira Dias, Lucrécio Africano de Carvalho e Aurélio Neves. Está aqui,, pois, um ilustre “naipe” de figuras grandes da nossa sociedade, merecidamente consagrados como precursores do nacionalismo angolano moderno.

 

  1. Esses fundadores da Liga Nacional Africana tinham, ainda, uma forte vocação pan-africanista, ao pretenderem unir num mesmo laço cultural, desportivo e recreativo os distintos africanos do Cairo ao Cabo. Isso pode explicar a designação que escolheram para a sua agremiação: Liga Nacional Africana. Afinal, o prenúncio de uma ideia de Unidade Africana.

 

  1. O meu primo Bento Falcão Pinto de Andrade, agora falecido, e os seus irmãos – o Mário e o Joaquim – acompanharam o germinar da semente associativista e proto-nacionalista lançada por aquela geração de homens grandes e que inspirou também outros homens grandes da nossa história moderna, como Viriato da Cruz, Lúcio Lara, Hugo de Menezes, Eduardo Macedo dos Santos, Agostinho Neto.

 

  1. Todos aqueles “Mais Velhos”, mais estes últimos, e as gerações que se lhes seguiram, entre as quais a minha, partimos de exercícios de afirmação da nossa identidade cultural para formas mais avançadas de luta, na busca do caminho que nos conduziria à completa autodeterminação.

 

  1. Aprendi com a minha mãe, que os ilustres antepassados da geração do Mário e do Viriato cultivavam, sobretudo, o gosto pela leitura, pelo saber, mas tinham, também, forte apego ao debate epistolar. Foram cultores dessa forma original de debate contraditório de ideias, ao seu tempo, um expediente para o aperfeiçoamento da sua cultura democrática.

 

  1. O meu “Primo Bentinho”, o Bento Falcão Pinto de Andrade, sempre nos manifestou a sua elevada estima pelo meu pai e seu tio, Justino Pinto de Andrade, a quem atribuía a maior responsabilidade no seu tirocínio democrático. E fazia-o nos seguintes termos: “Não foi nos livros que eu aprendi os fundamentos da Democracia. Foi com o meu Tio Justino!”. Uma frase que nos enchia de orgulho, nós que perdemos o nosso pai muito prematuramente.

 

  1. O debate democrático morou entre as nossas antigas elites culturais, ao ponto de, em 1948, Viriato da Cruz ter caracterizado da seguinte forma os objectivos do movimento cultural, o “Vamos Descobrir Angola”, de que se tornou o mais lídimo representante: “Queremos reavivar o espírito combatente dos escritores do fim do século XIX, de Fontes [José Fontes Pereira] e dos homens que compuseram “A Voz de Angola Clamando no Deserto”.

 

  1. Pena, sim, que os projectos totalitários que se seguiram tenham quebrado essa linha de intervenção cívica e política dos nossos antepassados. Mas, agora, a Nação já se vai, felizmente, renovando, vai saindo, aos poucos, da nova “noite grávida de punhais” – como caracterizou Mário Pinto de Andrade os últimos anos do período colonial – sobretudo pelo esforço e abnegação de uns poucos temerários que um dia a história consagrará…

 

  1. Com o desaparecimento físico do meu “Primo Bentinho” quase que dou por expirada uma linhagem de gente de boa cepa que inspirou os meus passos… Sou-lhes muito grato pelo que hoje sou.

 

  1. Aos 96 anos, o nosso Patriarca sucumbiu perante a força invencível da morte. Durante algum tempo, estaremos nós quase sem rumo… Até que se afirme um novo Patriarca…

2 comentários:

  1. Esse novo Patriarca sempre existiu. Justino Feltro Pinto de Andrade, de seu nome. Primo Bento descansa em Paz!

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