quinta-feira, 24 de abril de 2014

A CRISE NA UCRÂNCIA E O DILEMA DA MATRIZ ENERGÉTICA DA EUROPA


  1. A crise que despoletou agora na Ucrânia pôs a nu a fragilidade estrutural da União Europeia e a sua incapacidade de levar a cabo uma política externa condizente com os valores e princípios teóricos que defende.

  1. Está-se de novo face à iminência de desagregação de um país no centro da Europa, tal como sucedeu com a ex-Jugoslávia, e corre-se ainda o risco de se vir a assistir a outras alterações de fronteiras, sem soluções imediatas para se conter tais fenómenos centrífugos.

  1. A parte ocidental da Ucrânia mostra uma clara vontade de integrar o espaço comunitário europeu. Contudo, o lado oriental desse país dá também visíveis sinais de se querer juntar ao gigante vizinho, a Rússia, com quem mantém indiscutíveis afinidades étnicas. E a própria Rússia não consegue disfarçar a sua velha ambição imperial, uma ambição que parece não passar, necessariamente, pela reconstituição da antiga União Soviética mas, sim, por colocar sob a sua tutela todos os territórios habitados significativamente por populações russófonas. Isso faz com todos os países europeus que confinam com a Rússia se sintam ameaçados.

  1. O instrumento mais eficaz que a Europa possui para conter as ambições russas é o Pacto Atlântico, tutelado pelos EUA. E este país, não obstante todos os riscos inerentes a um possível conflito militar de grande envergadura na Europa, tem dados sinais de uma maior liberdade de acção no tocante ao seu relacionamento com a Rússia. Ao ponto de, numa das suas mais significativas intervenções feitas recentemente, o presidente Barack Obama ter apresentado o seu poderio militar face ao da Rússia como elemento determinante em caso de não se chegar a um entendimento pela via diplomática.

  1. Por seu lado, a Europa mostra-se demasiado tímida e hesitante no tratamento da questão da Ucrânia, muito em especial porque, na eventualidade de um conflito militar de grande envergadura, ele vir a ter lugar, mais uma vez, no seu espaço geográfico, acarretando, inevitavelmente, a destruição de uma boa parte do seu território, como sucedeu, por exemplo, aquando da Segunda Guerra Mundial.

  1. Pondo, embora, de parte a hipótese de conflito militar, a aplicação de duras sanções europeias contra a Rússia, levanta demasiadas interrogações, face à interdependência entre as economias dos dois lados – dos países europeus e da Rússia.

  1. O espaço da União Europeia, integrando 28 países, conta com 505 milhões de habitantes, cerca de 10,5% da população do planeta. A União Europeia consome 20% de toda a energia produzida no mundo, mas possui reservas diminutas, sem comparadas com o que consome. Possui somente 1% das reservas mundiais de petróleo, 1,5% das reservas de gás, 4% do carvão.

  1. A União Europeia ainda depende demasiado dos combustíveis fósseis, não obstante o esforço crescente que faz para reduzir essa dependência. E tem também uma dependência enorme face aos seus fornecedores, com especial destaque para a Rússia, de quem recebe o essencial do carvão, do petróleo e do gás natural.

  1. Face a isso, a Rússia socorre-se muito da Gazprom como instrumento privilegiado da sua diplomacia económica. Só que a dependência dos recursos fósseis provenientes da Rússia tem também outra face: a Rússia depende igualmente das receitas provenientes das suas vendas à Europa. As receitas da Gazprom – detida em 50% pelo estado russo – provêm em cerca de 60% das suas exportações de petróleo e gás para a Europa.

  1. Quer a Rússia, quer a União Europeia terão todo interesse em diversificar as suas relações. É já bastante notório o modo como tentam fazê-lo. Só que, em termos de comércio internacional, quer a matriz de consumo, quer a estrutura das parcerias, levam algum tempo a ser consumadas.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

DANIEL COHN-BENDIT - UM HOMEM DA SUA ÉPOCA


  1. O eurodeputado franco-alemão, Daniel Cohn-Bendit, anunciou no Parlamento Europeu a decisão de pôr fim à sua já longa carreira política, no final de cerca de 46 anos de activismo e enorme mediatização pública. O ponto mais alto dessa mediatização ocorreu precisamente há 46 anos, quando emergiu como o rosto mais visível do movimento do protesto estudantil que explodiu em França e que passou para a história com o nome de Maio de 68 – marco de um protesto que, depois, se espalhou por largas partes do mundo, especialmente na Europa e na América Latina.


  1. Para as gerações actuais, quer na Europa, quer em outras partes do mundo, o nome de Daniel Cohn-Bendit não quererá dizer nada ou quase nada. Para a minha geração, ele foi o contestador mais famoso de uma época que exigia profundas mudanças, muitas das quais ficaram apenas pelo sonho…
 

  1. Fazendo uma análise retrospectiva, vejo que a contestação social de 1968, de que Daniel Cohn-Bendit se tornou o grande emblema, resultou dos fenómenos contraditórios emergentes do desenvolvimento do modelo capitalista na Europa – e um pouco por todo o mundo – assim como dos decorrentes da implantação do “socialismo real” no chamado Bloco do Leste europeu. Decidi, por isso, revisitar esse período histórico. Vamos, pois, ao relato, mesmo que sucinto, do acontecido.


  1. Tudo começou com a eclosão de greves em algumas universidades e escolas de ensino secundário em Paris, após confrontos com a administração e a policia. À repressão policial, os estudantes franceses responderam com a convocação de uma greve geral que foi acompanhada por boa parte dos trabalhadores que também decidiram pela ocupação de fábricas em toda a França.

 
  1. O envolvimento da classe trabalhadora deu outra dimensão ao movimento de contestação iniciado pelos estudantes, pondo em causa o poder do general Charles De Gaulle, então Presidente francês.


  1. Os líderes estudantis reivindicavam o fim dos valores da “velha sociedade”, e o surgimento de novas regras de funcionamento no sistema educativo, o abandono dos velhos conceitos sobre a sexualidade e o prazer. Tiveram, assim, o apoio explícito de renomados pensadores da época, mesmo que alguns, como o filósofo Jean-Paul Sartre, tenham posteriormente declarado não ter entendido bem o que realmente queriam aqueles jovens contestatários, tal era a heterogeneidade do movimento…
 

  1. A contestação juvenil aderida inicialmente pela classe trabalhadora foi todavia vista com alguma relutância quer pelos sindicatos dos operários, quer pelo Partido Comunista Francês, na época muito próximo dos cânones do Stalinismo.
 

  1. O general Charles De Gaulle decidiu, então, realizar eleições, e satisfazer algumas das principais reivindicações dos trabalhadores – como, por exemplo, aumentos salariais e melhores condições de trabalho – provocando, assim, a corrosão e a desmobilização do movimento de contestação que estava a pôr em causa o seu poder.

 
  1. Embora se tenham travado combates de rua entre estudantes e forças policiais, as reivindicações estudantis eram assumidas, sobretudo, pela exibição de cartazes onde se podiam ler frases como: “A imaginação ao poder”, “Abaixo o realismo socialista. Viva o surrealismo!”, “É proibido proibir”, etc. Havia aqui, pois, uma mescla de esquerdismo com anarquismo, deixando também de sobreaviso os próprios líderes do Bloco Comunista Europeu.

 
  1. O grande inspirador da chamada Nova Esquerda, Herbert Marcuse, transformou-se num dos principais apoiantes dos estudantes revolucionários que tiveram igualmente a adesão de outros intelectuais, entre os quais cineastas famosos como François Truffaut e Jean Luc-Godard. Inspiraram ainda músicos como os Beatles - através de “Revolution” - e os Rolling Stones – que compuseram “Street Fighting man”.


  1. O movimento insurreccional ganhou adesão no próprio espaço político dominado pela então União Soviética, de que resultou a chamada “Primavera de Praga”, de Alexansder Dubcek, com a implantação do seu “socialismo humano”, reprimido pelos tanques de guerra do então Pacto de Varsóvia. E foi para além da Europa, para o Brasil e para o México.

 
  1. De certa forma, a minha geração política e académica é também tributária desse movimento de contestação que nasceu nos meios estudantis da Universidade de Nanterre, nos arredores de Paris, e que rapidamente mereceu a adesão da Sorbonne, estendendo-se até mesmo para universidades no Japão.

 
  1. O pano de fundo de tudo isso era a insatisfação de uma geração de novos actores sociais que estimularam a acção posterior de movimentos ambientalistas, defensores dos direitos humanos, lutadores pelos direitos das minorias, a luta contra a segregação racial e outras formas de discriminação.

 
  1. Fazendo hoje um balanço, é justo dizer que o movimento reivindicativo que teve em Daniel Cohn-Bendit o seu rosto mais visível deixou marcas indeléveis no percurso da nossa história moderna – mesmo que os historiadores de agora lhe reconheçam a falta de um ideário bem estruturado.

 
  1. É justo, pois, o modo como o Parlamento Europeu lhe rendeu homenagem, ao reconhecer a validade do papel que desempenhou ao longo destes anos – vinte dos quais como euro deputado.

 
  1. Por mim, e pelos que comigo comungaram os ideais de liberdade, aqui vai o nosso abraço fraterno, quando decides, agora, colocar ponto final a mais uma fase da tua luta por um mundo melhor.