quarta-feira, 24 de junho de 2015

“O ATENTADO” E “O GOLPE” – 46 ANOS DEPOIS


1.  Participei, em 2008, nas instalações da Assembleia da República Portuguesa, num colóquio internacional comemorativo do 35º aniversário do encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal (Cabo Verde), organizado por personalidades portuguesas ligadas ao movimento cívico “Não Apaguem a Memória”, que decidiram atribuir ao colóquio este simbólico título: “Tarrafal, uma prisão de dois continentes”. Com tal designação, os organizadores pretenderam evocar as duas grandes etapas do Campo de Concentração do Tarrafal.

 

2.  A primeira etapa do Campo do Tarrafal (1936/1954), correspondeu ao período em que por lá passaram (e muitos morreram) oposicionistas portugueses como, por exemplo, o então líder do Partido Comunista Português, Bento Gonçalves (morto em 1942), Gabriel Pedro - pai do meu amigo, agora nonagenário, Edmundo Pedro - mas, igualmente, Fernando Alcobia e Joaquim Faustino Campos, entre outros resistentes de diversas sensibilidades políticas. A segunda etapa (1962 a 1974) diz respeito ao período em que esse Campo de Concentração esteve povoado por presos políticos oriundos de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

 

3.  É bom, porém, assinalar também que, na segunda fase do Campo, coexistiram, mesmo que em áreas separadas, presos políticos com presos de delito comum cabo-verdianos.

 

4.  Eu e o Manuel Pedro Pacavira, hoje Embaixador, antigos presos políticos do Campo do Tarrafal, representámos os presos angolanos. O Jaime Cohen e o Luandino Vieira, também convidados, não estiveram presentes, embora o primeiro tenha mandado o seu depoimento por escrito.

 

5.  O Ex-Secretário Executivo da CPLP, Luís Fonseca, representou a geração dos presos políticos cabo-verdianos, tendo ainda participado como oradora a resistente cabo-verdiana Maria da Luz Boal (Lilica), esposa do Médico Manuel Boal (angolano radicado em Cabo Verde, onde assumiu cargos de enorme responsabilidade), ele também resistente do processo anticolonial, que a partir de certa altura, passou a militar no PAIGC, juntamente com Amílcar Cabral.

 

6.  Maria da Luz Boal é filha de “Nhá Beba”, figura grande da Vila do Tarrafal) e de Nhô Papacho, um casal que se mostrou sempre solidário com os presos, e a quem alguns muito ficaram a dever. Recordo-me também ter estado presente no colóquio, como orador, um ex-tarrafalista oriundo da Guiné-Bissau, Joaquim Lopes da Costa.

 

7.  Nesse ano de 2008 ainda viviam três ex-tarrafalistas resistentes antifascistas portugueses, dois dos quais se fizeram presentes: Edmundo Pedro, com um rico depoimento, percorrendo o seu longo e multifacetado caminho de vida, e Joaquim de Sousa Teixeira, que, por estar já demasiado debilitado, se fez ouvir pela voz da esposa, numa narrativa sobre a luta e a vida clandestina de ambos.

 

8.  O colóquio, “Tarrafal, uma prisão de dois continentes” foi aberto pelo então Presidente da Assembleia da República Portuguesa, Jaime Gama, ladeado pelo Ministro da Justiça de Portugal, Alberto Costa e pela Governadora Civil de Lisboa, Dalila Araújo.

 

9.  Fez parte do painel em que fui orador, um oficial do Marinha portuguesa, Miguel Judas, integrante do MFA (Movimento das Forças Armadas) em Cabo Verde, com a patente de Major, aquando da libertação do Campo do Tarrafal. Foi testemunha do momento da minha libertação e dos restantes companheiros, e apresentou-me à plateia.

 

10.                  A determinada altura, Miguel Judas questionou-me sobre se era verdade que uma das razões de a PIDE (a polícia política portuguesa) ter decidido prender-nos – a mim e ao meu grupo – teria sido o conhecimento de que pretendíamos matar o então Primeiro-Ministro português, o Professor Marcelo Caetano, durante a visita que estava programada a Angola. Respondi-lhe que não era bem assim, que não queríamos matar, mas, sim, “aplicar-lhe um susto”, um “susto” que produziria uma forte repercussão interna e internacional.

 

11.                  É evidente que um tal “arrepio” aplicado, em Luanda, ao Professor Marcelo Caetano seria um acto forte e muito mobilizador para a nossa luta de libertação, e lançaria por terra a propaganda colonial, segundo a qual a nossa luta era apenas levada a cabo por um punhado muito restrito de pessoas, geralmente alimentadas a partir do exterior. Agindo assim, cá dentro, em Luanda, o “arrepio” ao Presidente do Conselho fascista e colonialista valeria muito mais do que vários ataques a colunas do exército português nas picadas do interior… “A nossa verdadeira intenção não era matá-lo, mas, apenas, pregar-lhe um ‘susto´”. E acrescentei: “Como é lógico, tivemos todo um outro conjunto de razões para sermos presos, como expressam os nossos processos”.

 

12.                  Recordei-me desse episódio da minha vida, quando ouvi, e depois li, afirmações segundo as quais um grupo de jovens, ligados ao denominado Movimento Revolucionário, teria sido recentemente preso em Luanda, alegadamente por estar implicado numa tentativa de “golpe de Estado”, pondo assim em causa as instituições republicanas.

 

13.                  O tempo que separa o meu caso – e dos meus companheiros – acusados de prepararmos um “atentado” contra a vida do Professor Marcelo Caetano e o caso do suposto “golpe de Estado” “engendrado” por um pequeno núcleo de jovens são 46 anos.

MORREU VITÓRIA DE ALMEIDA E SOUSA


1.  Morreu Vitória de Almeida e Sousa, médica e ilustre combatente pela nossa independência, também uma convicta lutadora pelas nossas liberdades fundamentais. Ela era a viúva de Joaquim Pinto de Andrade, meu querido familiar e companheiro de luta.

 

2.  O interior da Igreja do Carmo, de onde partiram as suas cinzas para o Cemitério do Alto das Cruzes, ostentava um placard que resumia de forma lapidar o modo como ela apreciada pela comunidade cristã: “OBRIGADO Dr.ª VITÓRIA, MÃE, MÉDICA, PROFESSORA, CATEQUISTA E CONSELHEIRA INABALÁVEL”.

 

3.  A Igreja do Carmo tem um enorme simbolismo para a chamada velha sociedade crioula de Luanda, dado que se situa nos arredores da Ingombota, o local onde, eventualmente, se terá começado a gerar, de modo mais profundo e mais sistemático, o fenómeno da miscigenação cultural na cidade de Luanda.

 

4.  A Igreja do Carmo - de um saíram as cinzas da Vitória de Almeida e Sousa, assim como os restos mortais do Joaquim Pinto de Andrade e do seu irmão, Mário Pinto de Andrade, e, no passado, de outros descendentes das velhas famílias crioulas de Luanda - tem uma história riquíssima que remonta ao século XVII. Foi construída pelos missionários carmelitas – daí o nome Igreja do Carmo - no quadro de um complexo que incluía também um Convento.

 

5.  Os missionários carmelitas vieram para Angola a convite da então Regente do Reino de Portugal, D. Luísa de Gusmão, que instruiu o Governador-Geral para conceder apoio material ao projecto. Contou ainda com os generosos contributos dos crentes.

 

6.  A edificação deste lindo edifício demorou várias dezenas de anos, sendo já no século XVIII que lhe foram aplicados os azulejos que hoje revestem as suas paredes.

 

7.  Ao longo do tempo, a Igreja do Carmo tem sido objecto de várias intervenções para a sua restauração, a última das quais, creio, terá recebido o contributo de entidades portuguesas.

 

8.  Enquanto assistia à missa fúnebre em memória da Vitória, fui contemplando a beleza da nave da Igreja com o tecto todo ele pintado com motivos fitomórficos e painéis figurando santos, bem como os seus belos azulejos de tons azuis e brancos. Tudo isso trouxe-me à memória um determinado período da minha infância, quando, ainda menino, frequentei, por apenas um ano lectivo, a então “Escola 7”. Nessa altura, ao fim do dia, ia à Igreja do Carmo receber lições de religião e moral.

 

9.  Pela morte da Vitória, o meu companheiro Adolfo Maria escreveu um bonito texto ilustrando mais percursos da sua vida: os seus dados biográficos mais primários, como a data e o local de nascimento, a filiação, também o seu percurso académico. Depois, as partes mais relevantes da sua carreira como activista e militante pela causa da nossa independência. E o modo como a sua vida se cruzou com a daquele que se tronou seu esposo - afinal, o seu companheiro de uma longa vida: Joaquim Pinto de Andrade.

 

10.            Guardo da Vitória uma memória inestimável: o modo como ela soube dignificar a causa que abraçáramos, aquando da sua prisão em Portugal. Em 1965, juntamente com o meu primo Henrique Guerra e outros nacionalistas, foram encarcerados pela polícia política portuguesa, a PIDE. A Vitória passou mais de dois anos na cadeia e o Henrique Guerra gramou 8 anos e meio, sendo libertado já muito próximo do 25 de Abril de 1974, quando, finalmente, começou a mudar o rumo da nossa história.

 

11.           Libertada, a Vitória prosseguiu a sua actividade militante, articulando contactos entre os presos que estavam nas diversas prisões em Portugal, mas, também, connosco que estávamos no Tarrafal. Recolhia ofertas de solidariedade que nos fazia chegar. Nessas ofertas de solidariedade, introduzia, clandestinamente, informações sobre a situação política e militar no terreno da luta.

 

12.           Recordo-me de, um dia, ela ter introduzido, minuciosamente, em cigarros, um pequeno relatório sobre o evoluir da nossa luta, retirando de cada um deles o respectivo tabaco – restando apenas a sua porção mais superficial. O material chegou ao Tarrafal e o chefe da guarda, o Chefe Bonança, foi pessoalmente fazer a sua entrega à nossa cela – a Caserna 3. Depois de entregar a encomenda vinda de Lisboa – da Tó e, seguramente, de outras pessoas com ela articuladas -, o Chefe Bonança permaneceu na conversa. O Chico Caetano, nosso companheiro, ávido de fumar, abriu ali mesmo junto do Chefe Bonança um maço de cigarros, começando a fumar o que lhe veio à mão.

 

13.           O Chico Caetano era um companheiro com características muito particulares, duas das quais a precipitação nos actos e o vício do tabaco. Deu, pois, as primeiras baforadas no cigarro, sentindo, em vez de sabor típico do tabaco queimado, um outro sabor qualquer. O Chico estava, afinal, a queimar o papel clandestino que a Vitória tinha escondido, bem enroladinho dentro do cigarro. Para nosso desencanto, o precipitado do Chico Caetano queimava uma das preciosas mensagens que a nossa solidária companheira Vitória ardilosamente colocara no interior de alguns cigarros.

 

14.           O Chefe Bonança apercebeu-se de que algo estranho se estava a passar com o Chico Caetano… Um de nós – já não me lembro quem – conseguiu acalmar o Chico Caetano, que protestava pelo facto de o cigarro ter um fumo estranho… Levou-o para a casa de banho da cela, a tempo de ainda conseguir salvar uma parte da mensagem. Depois de o Chefe Bonança sair da cela, tivemos a árdua tarefa de tentar deduzir o conteúdo da parte queimada da mensagem. Fizemo-lo, articulando as partes salvas. Uma das boas novidades que a Vitória nos dava era de que havia uma forte possibilidade de o Viriato da Cruz regressar ao Movimento, deixando o seu exílio na China.

 

15.           Aquilo que parecia ser uma feliz notícia não se consumou: o Viriato da Cruz, por quem tínhamos uma enorme estima e respeito, acabou por morrer na China. E eu voltei a encontrar a Vitória de Almeida e Sousa, juntamente com o Joaquim, já em Brazzaville, pouco depois do 25 de Abril, iniciando uma nova etapa das nossas lutas.

 

16.           Ontem, dia 09 de Junho, fui despedir-me dela, na Igreja do Carmo e, depois, no Cemitério do Alto das Cruzes, perante a indiferença das autoridades deste país que ela também contribuiu para que se tornasse independente. E sobre a sua morte repousou um silêncio oficial sintomático…

PODER E POLÍTICA EM ÁFRICA


1.  Este texto tem como pano de fundo a passagem de mais um aniversário da instituição da Organização de Unidades Africana, OUA, criada e 25 de Maio de 1963, em Addis Abeba, na Etiópia, substituída, a 9 de Julho de 2002, por uma nova organização continental, a União Africana.

 

2.  Por altura da sua institucionalização, a Carta Magna da OUA definiu um quadro de objectivos que passo a resumir:

 

i)                   Promoção da unidade e solidariedade entre os Estados Africanos;

ii)                 Coordenação e intensificação da cooperação entre os Estados Africanos, com vista a melhorar as condições de vida dos seus povos;

iii)               Defesa da soberania, integridade territorial e independência dos Estados Africanos;

iv)               Erradicação de todas a formas de colonialismo no nosso continente;

v)                 Promoção da cooperação internacional, respeitando a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos;

vi)               Coordenação e harmonização das políticas dos Estados Africanos nas esferas política, diplomática, económica, educacional, cultural, de saúde e bem-estar, também no âmbito da ciência e técnica e de defesa.

 

3.  A escolha da Etiópia para ser a sede da OUA não obedeceu a um mero acaso. Pretendeu-se, assim, homenagear o país que, para alguns, é o Estado africano mais antigo. Recordo que a sua existência, enquanto Estado, remonta ao ano 940 a.C. – Tem, portanto, 2994 anos.

 

4.  Como sabemos, a Conferência de Berlim de 1885 desencadeou o fenómeno que é hoje conhecido como “A Partilha de África”, um processo que se tornou responsável por um dos períodos mais dramáticos que o nosso continente conheceu, uma vez que estimulou as chamadas “guerras de ocupação” que configuraram muitas das actuais fronteiras africanas, na sua maioria desobedecendo à repartição étnica e sociológica dos nossos povos. Apenas 2 países africanos - a Etiópia e a Libéria - escaparam a uma tal repartição, de que foram absolutos beneficiários algumas potências europeias.

 

5.  A Libéria, um dos Estados africanos mais antigos, foi fundada por ex-escravos enviados, como colonos, de volta para África. Devo, porém, dizer que a Libéria não era um espaço desabitado, pois já lá existiam outros povos – fala-se mesmo em 16 etnias autóctones – um facto seguramente responsável por alguns dos problemas que moldam até hoje o quadro dos seus conflitos modernos.

 

6.  A Libéria existe como um Estado independente desde 1847, pela mão desses mesmos colonos africanos e seus descendentes, cerca de 60 anos depois de os EUA – de onde eles haviam saído - terem proclamado a sua independência.

 

7.  Mas a independência da Libéria não se traduziu, de imediato, no direito de cidadania para todos os seus habitantes. Só mais de 50 depois (1904) é que foi conferido às etnias locais tal direito. Voltemos ainda, por alguns momentos, à Etiópia.

 

8.  Na ânsia de se afirmarem como potência colonial em África, os italianos, que já dominavam a Eritreia desde 1870, pretenderam também dominar a Etiópia. Porém, em 1896, foram derrotados pelo exército do Imperador etíope Memelik II, na célebre batalha de Adwa.

 

9.  A Etiópia guarda mais outra singularidade que talvez tenha justificado plenamente a sua condição de sede continental da OUA e, agora, da União Africana. Ela foi um dos 3 países africanos que, em 1919, participaram na fundação da Liga das Nações – também chamada “Sociedade das Nações” - a estrutura política internacional, criada pelo “Tratado de Versalhes”, na sequência do fim da Primeira Guerra Mundial, e que antecedeu a constituição, em 1945, da Organização das Nações Unidas. Os outros dois países africanos foram a União Sul-Africana – representada pelo seu Primeiro-Ministro, Jan Smuts – e a Libéria.

 

10.                  A Etiópia é, pois, um país de grande referência no nosso continente. Porém, alguns historiadores contestam a primazia dada à Etiópia como o primeiro Estado Africano, e fazem-no com base na história do Egipto.

 

11.                  Os antigos habitantes do Egipto atribuíam a unificação do seu Estado ao lendário Imperador Menés, Rei do Baixo Egipto e conquistador do Alto Egipto. Em 3000 a.C., ele terá formado um único Reino com capital em Mênfis, elevando-se, assim, à condição de uma espécie de semi-deus. O Imperador Menés é, por isso, considerado o primeiro Faraó do Egipto.

 

12.                  Neste momento em que homenageamos a criação da nossa Organização continental, de modo algum podíamos deixar de recordar o simbolismo de alguns dos países que a integram.

 

13.                  Hoje o nosso continente possui já 55 países independentes, 17 dos quais proclamadas em 1960 - por tal facto, glorificado como o “Ano de África”.

 

14.                  Das 17 proclamações do ano de 1960, 14 eram ex-colónias francesas. Antes desse ano de glória, já se haviam tornado independentes, o Ghana (1957) e a Guiné-Conacri (1958). Depois de 1960, o processo de proclamação das independências africanas ainda durou mais de 2 décadas, culminando com o estabelecimento do Zimbabwe (ex-Rodésia do Sul) (1980) e o fim do Apartheid na África do Sul (1994). A independência das ex-colónias portuguesas só veio a ter lugar na década de 70.

 

15.                  Julgo que vale a pena fazer uma, mesmo que breve, referência a dois casos particulares: a Somália e o Sahara Ocidental. Da Somália, pode até dizer-se que deixou de ser um verdadeiro Estado, sem estruturas adequadas. Desintegrou-se na sequência do fim do regime ditatorial de Mohamed Siad Barre. Por sua vez, no Sahara Ocidental, prevalece uma ocupação ilegítima por parte de outro Estado africano, o Marrocos, configurando, pois, uma situação de colonialismo intra-africano.

 

16.                   Avancemos, agora, para uma pequena radiografia da política no nosso continente.

 

17.                  A esmagadora maioria dos sistemas de governo prevalecentes em África são repúblicas vivendo sob regimes presidencialistas. É também o nosso caso que se acentuou com a entrada em vigor da nova Constituição.

 

18.                  As monarquias africanas têm expressão meramente residual: Marrocos, Lesotho e Suazilândia. Porém, existem outras monarquias, mas não como estados soberanos. São monarquias intraestados, devendo, por isso, ser objecto de uma outra abordagem.

 

19.                  Nos Estados africanos, as transições democráticas estáveis e duradouras são pouco expressivas. Nos últimos tempos temos assistido até a certas “sucessões monárquicas” em Estados africanos republicanos, com o poder a transitar de pais para filhos, mesmo que em alguns casos se procure criar uma aparente legitimação pelo voto popular.

 

 

20.                  Já é inegável essa “sucessão dinástica”. Mas é igualmente inegável que, na maioria dos casos, a “sucessão” tem lugar dentro do mesmo partido político. Ou seja, o poder mantém-se na mesma esfera partidária, o que significa que não tem havido uma mudança do centro de gravidade do poder.

 

21.                  Conheço políticos e analistas políticos que saúdam esse modelo de “sucessão”, argumentando que isso até promove uma expedita “renovação das elites políticas”.

 

22.                  Para mim, não se trata qualquer “renovação das elites políticas” mas, sim, de uma disfarçada “reciclagem das mesmas elites governantes”, que se limitam a rodar dentro de um círculo restrito, não alterando de modo substancial a correlação de forças interna. Isso desvirtua a essência da democracia, que se alimenta, precisamente, da alternância partidária.

 

23.                  A “reciclagem das elites governantes” torna secundário o papel dos partidos políticos no jogo democrático, e consolida a ideia de que apenas um partido tem vocação e reais condições para o exercício do poder. E também de que somente a sua elite é competente para o fazer.

 

24.                  É verdade que, na Europa Democrática, o poder político tem, sobretudo, rodado também em torno de um círculo central, no qual preponderam os partidos social-democratas e os partidos da chamada direita democrática. Por vezes, fazendo alianças pontuais com pequenas formações partidárias um pouco mais à direita ou um pouco mais à esquerda. Mas, na verdade, mesmo quando fazem tais alianças, é o chamado “centrão” que marca o compasso do tempo político na Europa.

 

25.                   Neste momento em que o quadro económico e social europeu mudou, o “centrão” mostra-se bastante adverso a novas abordagens e perspectivas apresentadas por forças que até então estiveram longe do exercício do poder. Os próximos tempos podem reservar interessantes surpresas.

 

26.                  Como já disse, em África, salvo raras excepções, quase não se assiste a qualquer rotação entre partidos políticos. Inclusive, há Presidentes que se encontram no exercício do poder há várias dezenas de anos, tais como José Eduardo dos Santos (Angola) e Robert Gabriel Mugabe (Zimbabwe). Trata-se, portanto, do princípio da fixação do poder político numa única pessoa. Outros Estados africanos para lá caminham, com a agora mais do que evidente “tentação para a alteração das Constituições” que permitam terceiros e mais mandatos presidenciais.

 

27.                  A África Central e a Região dos Grandes Lagos caminham nesse sentido, o que talvez nos ajude a compreender a razão de serem áreas de grande instabilidade política e social – a par da África do Norte de onde foram desalojados velhos ditadores e se instalou, por enquanto, uma assinalável anarquia.

 

28.                  Se é verdade que a maioria dos países africanos são repúblicas e regimes claramente presidencialistas, também é verdade que as democracias parlamentaristas têm pouca expressão no nosso continente. Cabo Verde e Ilhas Maurícias são casos interessantes de regimes parlamentaristas onde o processo democrático tem funcionado bem e com alternância do poder.

 

29.                  Em Cabo Verde, coexistem perfeitamente a figura do Presidente da República de um partido com um Governo de uma cor política distinta. Nenhum poder secundariza o outro.

 

30.                  Na Nigéria, ascendeu recentemente e democraticamente ao poder um Presidente da República proveniente de uma formação política da oposição, o que nos permite olhar para esse país com alguma expectativa. A Nigéria tem, também, a particularidade de ser uma Federação de Estados, um modelo que não se disseminou, e que poderia, eventualmente, ajudar a resolver algumas das dissonâncias que prevalecem em África.

 

31.                  A África do Sul optou por um regime parlamentarista mitigado. Ou, se preferirmos, por um presidencialismo mitigado, onde o Presidente da República é, ao mesmo tempo, Chefe de Estado e do Governo, governo que ele escolhe. Mas o Presidente é eleito pelo Parlamento. Dado que o ANC tem tido sucessivas maiorias absolutas, o Presidente provém sempre deste partido.

 

32.                  O poder legislativo na África do Sul é constituído por duas Câmaras: A Assembleia Nacional, em que metade dos seus membros é escolhida em listas partidárias nacionais, e a outra metade provém de listas partidárias provinciais. Além da Assembleia Nacional o poder legislativo integra ainda o Conselho Nacional das Provinciais.

 

33.                  Gostaria ainda de fazer uma breve incursão sobre o caso do Botswana. Trata-se de um país africano bastante extenso e interiorizado, mas muito pouco povoado. Todavia, do ponto de vista político, tem-se mostrado estável, sem conhecer graves convulsões: Realiza, desde 1965, e regularmente, eleições multipartidárias não contestadas.

 

34.                  O poder político mantém-se nas mãos do mesmo Partido, o Partido Democrático do Botswana. Porém, essa relativa estabilidade política pode também ter muito a ver com o facto de o Botswana ser um país etnicamente muito homogêneo, com os tswanas a corresponderem a cerca de 90% da população. A homogeneização étnica pode ser visto como um factor facilita a coesão social e dissuasor de tensões políticas.

 

35.                  A participação das mulheres no poder político é outra dimensão que merece ser abordada, sobretudo quando se busca a criação de sociedades mais justas e mais equilibradas.

 

36.                  A África do Sul é dos países mais bem posicionados no que respeita à participação feminina nos órgãos legislativos, pois possui cerca 45% de mulheres no Parlamento. É o quinto país do mundo nesse ranking, um ranking que é encabeçado pelo Ruanda (63,8%). Nos 10 primeiros lugares ao nível mundial figuram ainda mais 2 países africanos: a Seicheles (43,4%) e o Senegal (43,3%).

O DRAMA DOS EMIGRANTES


1.  O drama dos emigrantes africanos - e também asiáticos - que procuram refúgio na Europa, já tomou contornos demasiado assustadores, tal é o número dos que vão morrendo nas águas do Mar Mediterrâneo, tal é também o estado deplorável dos que chegam a bom porto, os poucos que ainda conseguem sobreviver.

 

2.  Trata-se de uma emigração dos tempos modernos que, forçosamente, nos faz remeter para um outro período negro da história quando, sobretudo, no Oceano Atlântico, repousavam os corpos de alguns dos nossos ancestrais, forçados a caminhar para terras desconhecidas e para destinos incertos.

 

3.  Muitos dos que ficaram para sempre nos fundos do Oceano, foram atirados ao mar pelos próprios traficantes negreiros que, assim, se descartavam de uma “carga” tornada, entretanto, ilícita, à luz das novas regras impostas pelas nações mais poderosas, que iniciaram mais cedo o processo de desenvolvimento capitalista, em especial, a Inglaterra e a França.

 

4.   O tráfico negreiro português permaneceu, por sua vez, por muito mais tempo, alimentando um modo de produção que se tornara obsoleto e contrário a uma nova consciência cívica e política, então emergente. Para alguns historiadores, nesse relativamente curto período de tempo, terão perecido no mar, talvez mais homens e mulheres do que os desaparecidos anteriormente.

 

5.  Parte do desenvolvimento económico que se verificou nas novas nações, entretanto, surgidas do outro lado do Atlântico, se deveu precisamente ao labor desses homens e mulheres que conseguiram chegar com vida aos novos destinos.

 

6.  De algum modo, não poucas nações europeias beneficiaram desse trabalho escravo, de que resultou um processo de acumulação de capital que as ajudou a progredir.

 

7.  Os nossos países tornados independentes geraram uma esperança de dias melhores. Geraram espectativas, entretanto, goradas, que fizeram do nosso continente um espaço pouco acolhedor para boa parte dos seus filhos. Sobreveio a intolerância e a fome. E muitos dos que ainda podem aspirar a uma vida melhor buscam, pois, outro porto de abrigo onde possam começar tudo de novo.

 

8.  Os actuais emigrantes que demandam desesperadamente a Europa provêm de zonas de conflito, em especial do norte de África – e também um pouco da Ásia – ou de países onde prevalece a fome e a intolerância política e religiosa. 

 

9.  O facto de muitos emigrantes saírem de zonas de risco – tais como a Líbia, Egipto ou mesmo a Síria - tem servido de argumento para quem defende a ideia de que as lutas para a instauração de regimes democráticos são, pois, lutas desnecessárias e perversas. Desse modo, os regimes ditatoriais seriam, afinal, o garante da paz e da estabilidade - uma tese que não faz sentido.

 

10.                  Tais regimes consolidaram-se quase sempre muito a custa de uma cega repressão dos opositores e sobre algumas comunidades. Foram mesmo eles que criaram todos os condimentos para que os actuais processos políticos conheçam enormes dificuldades.

 

11.                   Dificilmente se assiste a verdadeiras transições democráticas, porque emergiram novas contradições, ou reacenderam contradições adormecidas mas nunca resolvidas. O resultado tem sido a violência que empurra milhares de pessoas para uma emigração massiva e em desespero.

 

12.                  Emigrantes desesperados provêm ainda de países vizinhos ou até mesmo distantes daqueles onde se verificaram revoluções para pôr fim às ditaduras. De países pobres ou empobrecidos pela má governação, pela avidez do poder e pelo carácter depredador das suas elites dirigentes.

 
Não faz, pois, muito sentido irmos buscar justificações no passado colonial. Temos, sim, que ter coragem de olhar para dentro de nós e assumir as nossas próprias responsabilidades históricas.