quarta-feira, 24 de junho de 2015

PODER E POLÍTICA EM ÁFRICA


1.  Este texto tem como pano de fundo a passagem de mais um aniversário da instituição da Organização de Unidades Africana, OUA, criada e 25 de Maio de 1963, em Addis Abeba, na Etiópia, substituída, a 9 de Julho de 2002, por uma nova organização continental, a União Africana.

 

2.  Por altura da sua institucionalização, a Carta Magna da OUA definiu um quadro de objectivos que passo a resumir:

 

i)                   Promoção da unidade e solidariedade entre os Estados Africanos;

ii)                 Coordenação e intensificação da cooperação entre os Estados Africanos, com vista a melhorar as condições de vida dos seus povos;

iii)               Defesa da soberania, integridade territorial e independência dos Estados Africanos;

iv)               Erradicação de todas a formas de colonialismo no nosso continente;

v)                 Promoção da cooperação internacional, respeitando a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos;

vi)               Coordenação e harmonização das políticas dos Estados Africanos nas esferas política, diplomática, económica, educacional, cultural, de saúde e bem-estar, também no âmbito da ciência e técnica e de defesa.

 

3.  A escolha da Etiópia para ser a sede da OUA não obedeceu a um mero acaso. Pretendeu-se, assim, homenagear o país que, para alguns, é o Estado africano mais antigo. Recordo que a sua existência, enquanto Estado, remonta ao ano 940 a.C. – Tem, portanto, 2994 anos.

 

4.  Como sabemos, a Conferência de Berlim de 1885 desencadeou o fenómeno que é hoje conhecido como “A Partilha de África”, um processo que se tornou responsável por um dos períodos mais dramáticos que o nosso continente conheceu, uma vez que estimulou as chamadas “guerras de ocupação” que configuraram muitas das actuais fronteiras africanas, na sua maioria desobedecendo à repartição étnica e sociológica dos nossos povos. Apenas 2 países africanos - a Etiópia e a Libéria - escaparam a uma tal repartição, de que foram absolutos beneficiários algumas potências europeias.

 

5.  A Libéria, um dos Estados africanos mais antigos, foi fundada por ex-escravos enviados, como colonos, de volta para África. Devo, porém, dizer que a Libéria não era um espaço desabitado, pois já lá existiam outros povos – fala-se mesmo em 16 etnias autóctones – um facto seguramente responsável por alguns dos problemas que moldam até hoje o quadro dos seus conflitos modernos.

 

6.  A Libéria existe como um Estado independente desde 1847, pela mão desses mesmos colonos africanos e seus descendentes, cerca de 60 anos depois de os EUA – de onde eles haviam saído - terem proclamado a sua independência.

 

7.  Mas a independência da Libéria não se traduziu, de imediato, no direito de cidadania para todos os seus habitantes. Só mais de 50 depois (1904) é que foi conferido às etnias locais tal direito. Voltemos ainda, por alguns momentos, à Etiópia.

 

8.  Na ânsia de se afirmarem como potência colonial em África, os italianos, que já dominavam a Eritreia desde 1870, pretenderam também dominar a Etiópia. Porém, em 1896, foram derrotados pelo exército do Imperador etíope Memelik II, na célebre batalha de Adwa.

 

9.  A Etiópia guarda mais outra singularidade que talvez tenha justificado plenamente a sua condição de sede continental da OUA e, agora, da União Africana. Ela foi um dos 3 países africanos que, em 1919, participaram na fundação da Liga das Nações – também chamada “Sociedade das Nações” - a estrutura política internacional, criada pelo “Tratado de Versalhes”, na sequência do fim da Primeira Guerra Mundial, e que antecedeu a constituição, em 1945, da Organização das Nações Unidas. Os outros dois países africanos foram a União Sul-Africana – representada pelo seu Primeiro-Ministro, Jan Smuts – e a Libéria.

 

10.                  A Etiópia é, pois, um país de grande referência no nosso continente. Porém, alguns historiadores contestam a primazia dada à Etiópia como o primeiro Estado Africano, e fazem-no com base na história do Egipto.

 

11.                  Os antigos habitantes do Egipto atribuíam a unificação do seu Estado ao lendário Imperador Menés, Rei do Baixo Egipto e conquistador do Alto Egipto. Em 3000 a.C., ele terá formado um único Reino com capital em Mênfis, elevando-se, assim, à condição de uma espécie de semi-deus. O Imperador Menés é, por isso, considerado o primeiro Faraó do Egipto.

 

12.                  Neste momento em que homenageamos a criação da nossa Organização continental, de modo algum podíamos deixar de recordar o simbolismo de alguns dos países que a integram.

 

13.                  Hoje o nosso continente possui já 55 países independentes, 17 dos quais proclamadas em 1960 - por tal facto, glorificado como o “Ano de África”.

 

14.                  Das 17 proclamações do ano de 1960, 14 eram ex-colónias francesas. Antes desse ano de glória, já se haviam tornado independentes, o Ghana (1957) e a Guiné-Conacri (1958). Depois de 1960, o processo de proclamação das independências africanas ainda durou mais de 2 décadas, culminando com o estabelecimento do Zimbabwe (ex-Rodésia do Sul) (1980) e o fim do Apartheid na África do Sul (1994). A independência das ex-colónias portuguesas só veio a ter lugar na década de 70.

 

15.                  Julgo que vale a pena fazer uma, mesmo que breve, referência a dois casos particulares: a Somália e o Sahara Ocidental. Da Somália, pode até dizer-se que deixou de ser um verdadeiro Estado, sem estruturas adequadas. Desintegrou-se na sequência do fim do regime ditatorial de Mohamed Siad Barre. Por sua vez, no Sahara Ocidental, prevalece uma ocupação ilegítima por parte de outro Estado africano, o Marrocos, configurando, pois, uma situação de colonialismo intra-africano.

 

16.                   Avancemos, agora, para uma pequena radiografia da política no nosso continente.

 

17.                  A esmagadora maioria dos sistemas de governo prevalecentes em África são repúblicas vivendo sob regimes presidencialistas. É também o nosso caso que se acentuou com a entrada em vigor da nova Constituição.

 

18.                  As monarquias africanas têm expressão meramente residual: Marrocos, Lesotho e Suazilândia. Porém, existem outras monarquias, mas não como estados soberanos. São monarquias intraestados, devendo, por isso, ser objecto de uma outra abordagem.

 

19.                  Nos Estados africanos, as transições democráticas estáveis e duradouras são pouco expressivas. Nos últimos tempos temos assistido até a certas “sucessões monárquicas” em Estados africanos republicanos, com o poder a transitar de pais para filhos, mesmo que em alguns casos se procure criar uma aparente legitimação pelo voto popular.

 

 

20.                  Já é inegável essa “sucessão dinástica”. Mas é igualmente inegável que, na maioria dos casos, a “sucessão” tem lugar dentro do mesmo partido político. Ou seja, o poder mantém-se na mesma esfera partidária, o que significa que não tem havido uma mudança do centro de gravidade do poder.

 

21.                  Conheço políticos e analistas políticos que saúdam esse modelo de “sucessão”, argumentando que isso até promove uma expedita “renovação das elites políticas”.

 

22.                  Para mim, não se trata qualquer “renovação das elites políticas” mas, sim, de uma disfarçada “reciclagem das mesmas elites governantes”, que se limitam a rodar dentro de um círculo restrito, não alterando de modo substancial a correlação de forças interna. Isso desvirtua a essência da democracia, que se alimenta, precisamente, da alternância partidária.

 

23.                  A “reciclagem das elites governantes” torna secundário o papel dos partidos políticos no jogo democrático, e consolida a ideia de que apenas um partido tem vocação e reais condições para o exercício do poder. E também de que somente a sua elite é competente para o fazer.

 

24.                  É verdade que, na Europa Democrática, o poder político tem, sobretudo, rodado também em torno de um círculo central, no qual preponderam os partidos social-democratas e os partidos da chamada direita democrática. Por vezes, fazendo alianças pontuais com pequenas formações partidárias um pouco mais à direita ou um pouco mais à esquerda. Mas, na verdade, mesmo quando fazem tais alianças, é o chamado “centrão” que marca o compasso do tempo político na Europa.

 

25.                   Neste momento em que o quadro económico e social europeu mudou, o “centrão” mostra-se bastante adverso a novas abordagens e perspectivas apresentadas por forças que até então estiveram longe do exercício do poder. Os próximos tempos podem reservar interessantes surpresas.

 

26.                  Como já disse, em África, salvo raras excepções, quase não se assiste a qualquer rotação entre partidos políticos. Inclusive, há Presidentes que se encontram no exercício do poder há várias dezenas de anos, tais como José Eduardo dos Santos (Angola) e Robert Gabriel Mugabe (Zimbabwe). Trata-se, portanto, do princípio da fixação do poder político numa única pessoa. Outros Estados africanos para lá caminham, com a agora mais do que evidente “tentação para a alteração das Constituições” que permitam terceiros e mais mandatos presidenciais.

 

27.                  A África Central e a Região dos Grandes Lagos caminham nesse sentido, o que talvez nos ajude a compreender a razão de serem áreas de grande instabilidade política e social – a par da África do Norte de onde foram desalojados velhos ditadores e se instalou, por enquanto, uma assinalável anarquia.

 

28.                  Se é verdade que a maioria dos países africanos são repúblicas e regimes claramente presidencialistas, também é verdade que as democracias parlamentaristas têm pouca expressão no nosso continente. Cabo Verde e Ilhas Maurícias são casos interessantes de regimes parlamentaristas onde o processo democrático tem funcionado bem e com alternância do poder.

 

29.                  Em Cabo Verde, coexistem perfeitamente a figura do Presidente da República de um partido com um Governo de uma cor política distinta. Nenhum poder secundariza o outro.

 

30.                  Na Nigéria, ascendeu recentemente e democraticamente ao poder um Presidente da República proveniente de uma formação política da oposição, o que nos permite olhar para esse país com alguma expectativa. A Nigéria tem, também, a particularidade de ser uma Federação de Estados, um modelo que não se disseminou, e que poderia, eventualmente, ajudar a resolver algumas das dissonâncias que prevalecem em África.

 

31.                  A África do Sul optou por um regime parlamentarista mitigado. Ou, se preferirmos, por um presidencialismo mitigado, onde o Presidente da República é, ao mesmo tempo, Chefe de Estado e do Governo, governo que ele escolhe. Mas o Presidente é eleito pelo Parlamento. Dado que o ANC tem tido sucessivas maiorias absolutas, o Presidente provém sempre deste partido.

 

32.                  O poder legislativo na África do Sul é constituído por duas Câmaras: A Assembleia Nacional, em que metade dos seus membros é escolhida em listas partidárias nacionais, e a outra metade provém de listas partidárias provinciais. Além da Assembleia Nacional o poder legislativo integra ainda o Conselho Nacional das Provinciais.

 

33.                  Gostaria ainda de fazer uma breve incursão sobre o caso do Botswana. Trata-se de um país africano bastante extenso e interiorizado, mas muito pouco povoado. Todavia, do ponto de vista político, tem-se mostrado estável, sem conhecer graves convulsões: Realiza, desde 1965, e regularmente, eleições multipartidárias não contestadas.

 

34.                  O poder político mantém-se nas mãos do mesmo Partido, o Partido Democrático do Botswana. Porém, essa relativa estabilidade política pode também ter muito a ver com o facto de o Botswana ser um país etnicamente muito homogêneo, com os tswanas a corresponderem a cerca de 90% da população. A homogeneização étnica pode ser visto como um factor facilita a coesão social e dissuasor de tensões políticas.

 

35.                  A participação das mulheres no poder político é outra dimensão que merece ser abordada, sobretudo quando se busca a criação de sociedades mais justas e mais equilibradas.

 

36.                  A África do Sul é dos países mais bem posicionados no que respeita à participação feminina nos órgãos legislativos, pois possui cerca 45% de mulheres no Parlamento. É o quinto país do mundo nesse ranking, um ranking que é encabeçado pelo Ruanda (63,8%). Nos 10 primeiros lugares ao nível mundial figuram ainda mais 2 países africanos: a Seicheles (43,4%) e o Senegal (43,3%).

Sem comentários:

Enviar um comentário